Já aqui deixei a minha opinião sobre o entediante "O Turista", protagonizado por um sonâmbulo Johnny Depp e uma Angelina Jolie a levitar num desfile de alta costura. Pois bem, em 2007, Florian Henckel Von Donnersmarck foi responsável por um dos melhores filmes dessa década, aliás justo vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro, entre muitos outros prémios em importantes festivais de cinema europeu. Refiro-me ao intenso "As Vidas dos Outros", drama sobre a claustrofobia ideológica da ditadura comunista na ex-RDA.
"As Vidas dos Outros" começa na Alemanha de Leste, em 1984, cinco anos antes da Glasnost de Gorbachev e da queda do Muro de Berlim, conduzindo o espectador até 1991, já em plena Alemanha reunificada. O dispositivo dramático é extremamente interessante, levando-nos a acompanhar a progressiva desilusão do Capitão Gerd Wiesler, um oficial altamente credenciado da Stasi, a sufocante polícia política do regime comunista. A sua missão é espiar um prestigiado escritor, George Dreyman, e a sua esposa, a actriz Christa-Maria Sieland. Nesta película, o realizador alemão consegue a proeza de humanizar um personagem à partida com tudo para ser detestado. De facto, o Capitão Wiesler vive na aceitação e total conformidade com o sistema político, mas a proximidade com as vítimas (que ignoram estar a ser vigiadas) leva-o a questionar os princípios (falácias) que sustentam a grande ilusão ideológica. Sentimos que o exemplar inquiridor nunca esteve tão próximo (íntimo) de alguém quanto com o casal de artistas e que a sua solidão era a solidão de todos os que se subjugavam a um regime opressivo e absolutista.
Raras vezes o cinema contemporâneo conseguiu reflectir tão profundamente sobre a relação entre o individual e o colectivo, analisando a tentativa das ditaduras aniquilarem o indivíduo em nome de um ideal político obsoleto. É também pertinente estabelecer um paralelismo com outra obra incontornável do cinema dos últimos dez anos, "Adeus, Lenine", filme assinado por Wolfgang Becker em 2003. Mas neste último (a encenação criada por um filho que assim prolongava a uma mãe doente a ilusão da utopia socialista) a ditadura servia de pretexto à ridicularização da ditadura, agora transfigurada pela comédia; enquanto que em "As Vidas dos Outros" não há lugar para a realização individual - a existência humana plena e total - em sistemas políticos totalitários. Este filme é a prova de que também no cinema há grandes artistas que fazem bons e maus filmes.