Há um momento no filme Tony Manero em que o protagonista está na sala de estar de uma idosa a quem ele ajudou a regressar a casa, após uma agressão, fundamental para percebermos esta obra de uma violência em surdina, sempre latente: a mulher pergunta-lhe, com algum encanto, se ele sabia que os olhos do general Pinochet são azuis. Inesperadamente, Raúl Peralta - bailarino amador obcecado pela personagem interpretada por John Travolta em Febre de Sábado à Noite (1977), de John Badham - espanca a mulher até à morte. Trata-se de uma das cenas iniciais desta fita maior de Pablo Larraín, que nos coloca no Estado de Sítio que o Chile vivia nos anos 70 do século XX durante a ditadura feroz de Pinochet. Segundos antes, a mesma mulher tinha-lhe oferecido uma lata de atum fora de prazo, convidando-o a instalar-se confortavelmente no sofá, em frente a uma pequena televisão a cores. É esta novidade tecnológica, na altura, que reinstala o artifício: um regime impõe uma felicidade encenada e a cores. Raúl, homem de meia-idade frio e amoral, prefere o sonho americano vendido por Hollywood ao ritmo do disco sound.
Numa outra cena, a proprietária do bar de bairro, onde Raúl tenta recriar as coreografias do filme de Badham, diz-lhe que ele precisa de encontrar um emprego, até porque está a envelhecer e, um dia, ninguém se vai lembrar de Tony Manero e daquela música que não passa de uma moda passageira. Raúl responde: "Não é uma moda." É esta incapacidade em ler o real que faz de Raúl/Tony mero simulacro de um país em perda de identidade cultural. Aliás, o protagonista prefere a pop industrial dos Bee Gees à folk nacional.
Analisemos ainda outro momento do filme: Raúl vai ao cinema rever pela enésima vez Febre de Sábado à Noite, mas o filme já saiu de cartaz e foi substituído por outra película com Travolta, desta vez Grease (1978), de Randal Kleiser. Raúl não gosta dos personagens nem das canções, e descarrega a sua fúria no projecionista, assassinando-o e saindo da cabine de projeção com a bobine do filme de Badham. Em casa, procura ver os fotogramas à luz do candeeiro, como se aquela fosse a realidade para onde, definitivamente, Raúl se transmutou.
Entretanto, este Tony chileno, que sonha em participar num concurso televisivo de imitadores de Travolta, vai deixando atrás de si um rasto de cadáveres, pessoas que vai assassinando como meio de materializar o sonho americano comercializado pelo regime chileno.
Raúl é desalmado, cruel e impiedoso; embora impotente, seduz a filha da amante; não hesita em eliminar a concorrência de outros imitadores, defecando num fato branco igual ao do Travolta dançarino de Febre de Sábado à Noite. Sempre de câmara à mão e imagem granulada, Larraín desconstrói a ditadura de Pinochet a partir de uma certa perceção simbólica do icónico filme de Badham.