domingo, 28 de junho de 2020

Pablo Larraín (1) - "Tony Manero" (2008)


Há um momento no filme Tony Manero em que o protagonista está na sala de estar de uma idosa a quem ele ajudou a regressar a casa, após uma agressão, fundamental para percebermos esta obra de uma violência em surdina, sempre latente: a mulher pergunta-lhe, com algum encanto, se ele sabia que os olhos do general Pinochet são azuis. Inesperadamente, Raúl Peralta - bailarino amador obcecado pela personagem interpretada por John Travolta em Febre de Sábado à Noite (1977), de John Badham - espanca a mulher até à morte. Trata-se de uma das cenas iniciais desta fita maior de Pablo Larraín, que nos coloca no Estado de Sítio que o Chile vivia nos anos 70 do século XX durante a ditadura feroz de Pinochet. Segundos antes, a mesma mulher tinha-lhe oferecido uma lata de atum fora de prazo, convidando-o a instalar-se confortavelmente no sofá, em frente a uma pequena televisão a cores. É esta novidade tecnológica, na altura, que reinstala o artifício: um regime impõe uma felicidade encenada e a cores. Raúl, homem de meia-idade frio e amoral, prefere o sonho americano vendido por Hollywood ao ritmo do disco sound.

Numa outra cena, a proprietária do bar de bairro, onde Raúl tenta recriar as coreografias do filme de Badham, diz-lhe que ele precisa de encontrar um emprego, até porque está a envelhecer e, um dia, ninguém se vai lembrar de Tony Manero e daquela música que não passa de uma moda passageira. Raúl responde: "Não é uma moda." É esta incapacidade em ler o real que faz de Raúl/Tony mero simulacro de um país em perda de identidade cultural. Aliás, o protagonista prefere a pop industrial dos Bee Gees à folk nacional.

Analisemos ainda outro momento do filme: Raúl vai ao cinema rever pela enésima vez Febre de Sábado à Noite, mas o filme já saiu de cartaz e foi substituído por outra película com Travolta, desta vez Grease (1978), de Randal Kleiser. Raúl não gosta dos personagens nem das canções, e descarrega a sua fúria no projecionista, assassinando-o e saindo da cabine de projeção com a bobine do filme de Badham. Em casa, procura ver os fotogramas à luz do candeeiro, como se aquela fosse a realidade para onde, definitivamente, Raúl se transmutou. 

Entretanto, este Tony chileno, que sonha em participar num concurso televisivo de imitadores de Travolta, vai deixando atrás de si um rasto de cadáveres, pessoas que vai assassinando como meio de materializar o sonho americano comercializado pelo regime chileno.

Raúl é desalmado, cruel e impiedoso; embora impotente, seduz a filha da amante; não hesita em eliminar a concorrência de outros imitadores, defecando num fato branco igual ao do Travolta dançarino de Febre de Sábado à Noite. Sempre de câmara à mão e imagem granulada, Larraín desconstrói a ditadura de Pinochet a partir de uma certa perceção simbólica do icónico filme de Badham.


sábado, 27 de junho de 2020

"Da 5 bloods" - apologia da inter-racialidade


Descobri o cineasta Spike Lee com o filme Do The Right Thing, corria o ano de 1989 e estava a terminar o liceu (por onde anda esta palavra, verdadeira referência identitária de uma adolescência quase adulta?). Alguns críticos referiam-se a Spike Lee como o Woody Allen negro, mérito das suas primeiras obras (She's Gotta Have It, de 1986, e School Daze, de 1988), onde, sendo já possível encontrar as marcas distintivas do seu cinema (e que iria apurar em obras posteriores), conhecíamos personagens urbanas intelectuais de classe média, as suas relações afetivas e dilemas existenciais embrulhados numa estética próxima dos primeiros clássicos do realizador de Annie Hall (1979) e Manhattan (1979). Rever hoje She's Gotta Have It ou Do The Right Thing é redescobrir comédias frescas, ousadas e, acima de tudo, livres. Sim, as melhores Spike Lee joints são aquelas em que se sente que o realizador está - à semelhança de Allen, Coppola, Kubrick ou Tarantino - a fazer realmente o filme que queria com total liberdade criativa.

Estamos em 2020 e o cinema já não é sinónimo de sala escura e grande ecrã. Spike Lee disse numa entrevista recente que fica estupefacto quando os seus alunos de cinema lhe contam que viram épicos de David Lean no telemóvel, e é essa a sensação do cinéfilo ao ver que o novo filme do autor de Jungle Fever (1991) foi concebido para a Netflix e não para o grande ecrã. Mas Da 5 bloods é cinema autêntico: uma comédia trágica americana filmada com o rigor e a sabedoria de um artista já veterano e o desprendimento experimental do jovem que assinou Do The Right Thing há mais de 30 anos.

Quatro velhos amigos, irmãos de armas na Guerra do Vietname, regressam a este país, 50 anos depois, para resgatarem o corpo de um soldado e recuperarem as barras de ouro que esconderam na selva vitenamita. Spike Lee intercala a narrativa principal com imagens de arquivo e com flashbacks dos cinco camaradas no inferno da guerra mantendo os atores sem qualquer rejuvenescimento (ao contrário, por exemplo, do artificialismo digital de O Irlandês (2019), de Martin Scorsese).

Que não restem dúvidas: este é o Spike Lee pregador, historiador especialista em african-american history, intelectual num perpétuo estado de angústia, mas também o artista otimista que vê claramente que Deus é Amor, que Ele está na beleza das canções de Marvin Gaye, na inter-racialidade e que só o Amor nos pode salvar enquanto indivíduos e enquanto espécie. Ah!, e há um Delroy Lindo no papel da sua vida. Só por ele, e pela garra da sua interpretação, já valia a pena ver este digno sucessor de BlacKkKlansman (2018) e - por que não dizê-lo - Apocalypse Now (1979), de Francis Ford Coppola.

sexta-feira, 26 de junho de 2020

"Feliz dia para morrer" - híbrido inútil de Christopher Landon


Há filmes assim, fabricados aparentemente sem propósito e sem rumo definido. Sim, porque se a finalidade de Feliz dia para morrer for entreter a baixo custo e enriquecer os seus investidores, a fita não parece sequer cumprir tais metas (embora os resultados no box office tenham revelado o oposto).

Trata-se de um produto híbrido - ora parece filme de terror, ora parece thriller e, por vezes, não se quer levar a sério (o que não seria mau) fingindo ser comédia (e a escatologia mais reles também passa por aqui).

E, no final, era apenas uma variação inútil do clássico de Harold Ramis, O feitiço do tempo.

P.S.: Escrevi este breve texto em 2018 e, entretanto, o filme em análise foi objeto de uma sequela assinada pelo mesmo realizador e com a mesma protagonista. Trata-se de um daqueles casos em que a réplica (desta vez a brincar com o clássico de Robert Zemeckis, Regresso ao futuro II) é bem melhor do que o modelo original, sendo um digno objeto de puro entretenimento.

quarta-feira, 24 de junho de 2020

"The Assassination of Gianni Versace: American Crime Story"


A segunda temporada da série "American Crime Story", do genial escritor e produtor Ryan Murphy, é um autêntico épico televisivo americano em 9 partes. Construído sob a forma de um gigantesco puzzle onde as peças se vão encaixando ao longo dos episódios, a narrativa nunca se torna redundante, respeita a singular complexidade das personagens e tem a originalidade de se centrar no elemento mais repugnante (e complexo) desta tragédia americana.

Breves notas sobre o cinema de Wong Kar Wai (6) - "Disponível Para Amar" (2000)

E, no ano da graça de 2000, Wong Kar Wai alcançou o zénite da sua (sétima) arte com a obra-prima Disponível Para Amar . É (mais) uma históri...