Desde o primeiro "Batman" de Tim Burton que não se via um filme assim: sob a capa de um filme de super-heróis, encontramos uma análise profunda, sociológica e política dos Estados Unidos da América. "Watchmen", de Zack Snyder, é uma autêntica (re)visão histórica da América do século XX. O genérico inicial, acompanhado pela canção "The Times They're A-Changin'" de Bob Dylan, é a este nível exemplar, um verdadeiro prodígio técnico e estético. Aliás, para quem achar que o cinema enquanto arte é incompatível com efeitos especiais encontra neste filme uma prova do contrário.
A película em análise é uma espantosa e fiel construção a partir da mais aclamada graphic novel de todos os tempos, desenhada por David Gibbons e escrita por Alan Moore, mas agora com o cunho indiscutível de Zack Snyder (o mesmo que adaptou "300" para o cinema). Com um grupo de actores de excelência (não confudir com vedetas da sétima arte), Snyder consegue recriar os cenários, adereços e ambientes que se situam entre os anos 40 e 80 do século passado, onde um diverso e fascinante leque de personagens habita: o honesto Coruja Nocturna (Patrick Wilson), o existencialista e introspectivo Rorschach (Jackie Earle Haley), o racionalista Dr. Manhattan (Billy Crudup), a sensual Espectro de Seda (Malin Akerman), o megalómano Ozymandias (Matthew Goode) e o ambíguo Comediante (Jeffrey Dean Morgan).
Numa estrutura narrativa que integra uma brilhante encenação, cruzando a continuidade temporal (a história que começa com o assassínio do Comediante) com a descontinuidade (os flashbacks que nos revelam detalhadamente o passado dos personagens principais), Snyder filma a história de uma equipa de super-heróis, outrora glorificados, que agora (leia-se, nos anos 80) foram postos de lado pelo próprio poder político. No entanto, uma guerra nuclear prestes a ser travada entre norte-americanos e soviéticos vai conduzir os extintos "Watchmen" a recuperarem os seus fatos de super-heróis e tentar impedir a destruição da humanidade.
Refira-se que neste filme estamos perante um progresso histórico e político alternativo: os EUA sairam vitoriosos da Guerra do Vietname e Richard Nixon foi reeleito (pressupomos que o escândalo Watergate não chegou a acontecer), continuando Henry Kissinger como seu principal conselheiro. Aliás, o filme termina com a referência à candidatura de Ronald Reagan à presidência, mas já no final da década de 80, o que, na realidade, coincidiu com o fim do seu segundo mandato.
Outra marca distintiva da presente película é a curiosa inversão nas características psicológicas/identitárias dos super-heróis: em "Watchmen", eles sentem-se despojados do seu verdadeiro eu quando confudidos com qualquer outra pessoa vulgar; pelo que as suas verdadeiras identidades estão nessa diferença, a de terem sido super-heróis e, por isso, sê-lo-ão para sempre. Pelo contrário, se atentarmos em todos os outros super-heróis da BD e do cinema, todos gostariam de poder ser apenas Peter Parker (Homem-Aranha), Clark Kent (Super-Homem) ou Bruce Banner (Hulk).
Trata-se de um verdadeiro deleite para os sentidos e a inteligência contemplar este objecto fílmico, construído com sentido de compromisso e paixão pela sua origem - a BD. Parábola épica sobre o poder e a justiça, "Watchmen" é uma grandiosa e profunda obra moral e um dos objectos artísticos mais impressionantes e arrojados da primeira década do século XXI.
Trailer de "Watchmen", de Zack Snyder