sábado, 14 de janeiro de 2017

"Coração de Cão" - reflexão sobre a morte para os vivos

Em Coração de Cão, Laurie Anderson constrói um complexo filme-ensaio sobre o significado da morte e a sua ligação ao amor.

A partir da morte do seu cão, Lolabelle, a mítica artista nova-iorquina monta um puzzle de imagens acompanhadas por uma banda-sonora algo soturna (da sua autoria) e por narração em off (a cargo da própria realizadora), transcendendo as barreiras da ficção e do documentário. No fundo, estamos perante poesia em imagens ou, como diria Nietzsche, "o filósofo [a falar] pela boca do poeta".

É particularmente arrepiante a breve aparição de Lou Reed enquanto ouvimos Anderson sussurrar: "Reconhece isto!". De resto, o filme é dedicado à memória do músico falecido em 2013 (Coração de Cão termina com uma balada de Reed, com o sugestivo título Turning Time Around).

Que não restem dúvidas: a película de que aqui se fala é uma obra de arte completa, reunindo várias linguagens estéticas (pintura, desenho, fotografia, música, poesia, filosofia, imagens de arquivo, documentário, filmes de 8mm, ficção, história) e, sobretudo, assumindo, de forma corajosa, a morte como o maior (e talvez o único) problema existencial - feito cada vez mais raro no cinema contemporâneo, que se entretém, não poucas vezes, a celebrar a vida enquanto oposto da morte (ou como tentativa de a anular).

Laurie Anderson olha a morte nos olhos, relaciona Wittgenstein, Kierkegaard e O Livro Tibetano dos Mortos para concluir que a morte é a libertação do amor. Se quer saber porquê, veja o filme. É apenas o melhor que as salas de cinema nacionais exibiram em 2016.

domingo, 8 de janeiro de 2017

"Gelo" - filme ambicioso de Gonçalo e Luís Galvão Teles

Rara abordagem do cinema português à ficção científica (de repente, só me vem à memória o cinema de António de Macedo), Gelo é uma película tecnicamente perfeita, com um argumento ousado mas sem alma - o elan vital que transforma um exercício de estilo numa obra que, exaltando sentidos e razão, justifica suspendermos a vida quotidiana durante cerca de duas horas para nos envolvermos em outra(s) vida(s).

Sim, o argumento contém múltiplas camadas (uma história dentro de outra história que está dentro de outra história; o que é, no filme, real e o que é sonho?; será a própria vida um sonho?; coexistiremos em vidas alternativas e simultâneas?; haverá vida depois da morte?); sim, Ivana Baquero flirta naturalmente com a câmara numa fotogenia digna de ícones do cinema clássico; sim, a direção de fotografia é rigorosa (sem ser deslumbrante); mas, por melhores que sejam as intenções da família Galvão Teles, o filme não penetra na pele e nunca nos faz acreditar naquela vida futura, que permanece somente uma caricatura da ideia que lhe subjaz.

[Uma nota à parte: o anotador de Gelo é o meu velho amigo Paulo Milhomens, que recentemente concluiu o filme Axilas, de José Fonseca e Costa.]

quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

Banda sonora para o inverno (30) - Eric Clapton: "I Still Do"

Revisitação de um dos melhores álbuns editados em 2016: I Still Do é o disco em que Eric Clapton coloca-se frente a frente com a inevitabilidade do envelhecimento, não para lamentar a vida que teve ou más escolhas que (eventualmente) fez, mas sim para celebrar a música que verdadeiramente o inspirou e iluminou o seu caminho desde a década de 60 do século XX. É como se todos os álbuns anteriores tivessem sido o percurso (inevitável) para chegar até aqui, a I Still Do.

Blues, rock e até uma ou outra subtil evocação da pop que marcou algumas canções (sobretudo, da década de 80), este é um disco para ouvir repetidamente. Para sempre.

terça-feira, 3 de janeiro de 2017

"Vontade Indómita" - obra maior de King Vidor

Reflexão em torno das mudanças de paradigma enquanto produto da inciativa individual (e não da vontade de uma comunidade), Vontade Indómita (1949) é, talvez, a mais ousada das obras-primas de King Vidor, cineasta (também ele) individualista e obstinado na sua apologia de um cinema rigoroso e sem cedências.

Em boa verdade, esta memorável adaptação do romance The Fountainhead, de Ayn Rand, é o filme em que King Vidor expõe sem pudor a sua forma de ver o mundo e o seu espírito individualista. Gary Cooper encarna um arquiteto que prefere destruir com dinamite um edifício que projetara, a permitir a sua adulteração por empresários mais sedentos de lucro fácil do que ansiosos por criatividade. Qual metáfora de uma indústria cinematográfica exclusivamente preocupada com receitas de bilheteira e não com a educação do público a partir de novas abordagens estéticas. De resto, o julgamento final é uma declarada profissão de fé do individualismo contra as utopias coletivistas.

Quase ao nível de Citizen Kane (1941), Vontade Indómita, em boa verdade, é só comparável à obra maior de Orson Welles.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

Banda sonora para o inverno (29) - Tohpati Ethnomission: "Mata Hati"


E da Indonésia chega o primeiro grande disco de 2017. Chama-se Mata Hati e é assinado pelos Tohpati Ethnomission, banda de jazz-rock com fortes influências de world music. Por estas ondas sonoras navegam também notas de Jethro Tull em composições de difícil catalogação, como de resto toda a grande música.

domingo, 1 de janeiro de 2017

Estado da Nação (16) - um país com 50% de pobres

No início de mais um ano, convém não esquecer que a pobreza é o maior problema de Portugal.
De acordo com o mais recente estudo do Instituto Nacional de Estatística (INE) sobre a pobreza em Portugal, um em cada cinco portugueses viveu com rendimentos líquidos inferiores a 439 euros em 2015. Segundo o INE, naqueles rendimentos estão incluídas as chamadas transferências sociais, isto é, subsídios e outras ajudas do Estado e de instituições particulares. Caso estas transferências fossem retiradas do cálculo nacional para se considerarem apenas os rendimentos pessoais reais (por exemplo, obtidos por trabalho), chegar-se-ia à conclusão de que metade da população de Portugal (mais exatamente, 46,3%, segundo aquele Instituto) estaria em risco de pobreza em 2015. E, segundo parece, a situação do país não melhorou sob os auspícios da geringonça.

Segundo o INE, metade dos portugueses não tem capacidade para passar uma semana de férias por ano fora de casa; um em cada quatro portugueses não pode pagar uma despesa inesperada sem recorrer a um empréstimo; e um em cada dez tem o pagamento da renda da casa em atraso.

Nesta quadra natalícia, convém não esquecer que um em cada cinco portugueses não consegue aquecer devidamente a sua casa. Muitos destes portugueses são idosos, entre os quais o risco de pobreza tem vindo a aumentar significativamente nos últimos anos.

Breves notas sobre o cinema de Wong Kar Wai (6) - "Disponível Para Amar" (2000)

E, no ano da graça de 2000, Wong Kar Wai alcançou o zénite da sua (sétima) arte com a obra-prima Disponível Para Amar . É (mais) uma históri...