terça-feira, 26 de março de 2013

"The Hunt" - um filme discretamente perturbador

Thomas Vinterberg, realizador dinamarquês conhecido por um dos mais célebres filmes decorrentes do manifesto estético Dogma, "A Festa", assina o recém-estrado "The Hunt", película formalmente discreta (sobretudo, se compararmos com o desvio anarquista que foi o manifesto Dogma), mas dramaticamente perturbadora, acerca de um educador de infância que se torna vítima de uma caça às bruxas quando uma criança o acusa de abuso sexual. À deriva num mar de suspeitas, Lucas não consegue provar a sua inocência, nem aos mais próximos. 

Mads Mikkelsen venceu em Cannes a Palma de Ouro pela sua impressionante interpretação de um homem comum vítima de uma acusação devastadora, sugerindo com arrepiante precisão que ainda há crimes pelos quais se é considerado culpado até se ser provado inocente. Em boa verdade, da suspeita (injusta) de comportamento criminoso Lucas não mais se livrará, mesmo que a comunidade, no seu artificial regresso à normalidade, oculte o passado através de rituais iniciáticos. Obrigatório!


sábado, 23 de março de 2013

O roubo do presente

Nunca uma situação se desenhou assim para o povo português: não ter futuro, não ter perspetivas de vida social, cultural, económica, e não ter passado porque nem as competências nem a experiência adquiridas contam já para construir uma vida. Se perdemos o tempo da formação e o da esperança foi porque fomos desapossados do nosso presente. Temos apenas, em nós e diante de nós, um buraco negro.
O «empobrecimento» significa não ter aonde construir um fio de vida, porque se nos tirou o solo do presente que sustenta a existência. O passado de nada serve e o futuro entupiu.
O poder destrói o presente individual e coletivo de duas maneiras: sobrecarregando o sujeito de trabalho, de tarefas inadiáveis, preenchendo totalmente o tempo diário com obrigações laborais; ou retirando-lhe todo o trabalho, a capacidade de iniciativa, a possibilidade de investir, empreender, criar. Esmagando-o com horários de trabalho sobre-humanos ou reduzindo a zero o seu trabalho.
O Governo utiliza as duas maneiras com a sua política de austeridade obsessiva: por exemplo, mata os professores com horas suplementares, imperativos burocráticos excessivos e incessantes: stresse, depressões, patologias borderline enchem os gabinetes dos psiquiatras que os acolhem. É o massacre dos professores. Em exemplo contrário, com os aumentos de impostos, do desemprego, das falências, a política do Governo rouba o presente de trabalho (e de vida) aos portugueses (sobretudo jovens).
O presente não é uma dimensão abstrata do tempo, mas o que permite a consistência do movimento no fluir da vida. O que permite o encontro e a intensificação das forças vivas do passado e do futuro - para que possam irradiar no presente em múltiplas direções. Tiraram-nos os meios desse encontro, desapossaram-nos do que torna possível a afirmação da nossa presença no presente do espaço público.
Atualmente, as pessoas escondem-se, exilam-se, desaparecem enquanto seres sociais. O empobrecimento sistemático da sociedade está a produzir uma estranha atomização da população: não é já o «cada um por si», porque nada existe no horizonte do «por si». A sociabilidade esboroa-se aceleradamente, as famílias dispersam-se, fecham-se em si, e para o português o «outro» deixou de povoar os seus sonhos - porque a textura de que são feitos os sonhos está a esfarrapar-se. Não há tempo (real e mental) para o convivio. A solidariedade efetiva não chega para retecer o laço social perdido. O Governo não só está a desmantelar o Estado social, como está a destruir a sociedade civil.
Um fenómeno, propriamente terrível, está a formar-se: enquanto o buraco negro do presente engole vidas e se quebram os laços que nos ligam às coisas e aos seres, estes continuam lá, os prédios, os carros, as instituições, a sociedade. Apenas as correntes de vida que a eles nos uniam se romperam. Não pertenço já a esse mundo que permanece, mas sem uma parte de mim. O português foi expulso do seu próprio espaço continuando, paradoxalmente, a ocupá-lo. Como um zombie: deixei de ter substância, vida, estou no limite das minhas forças - em vias de me transformar num ser espetral. Sou dois: o que cumpre as ordens automaticamente e o que busca ainda uma réstia de vida para os seus, para os filhos, para si.
Sem presente, os portugueses estão a tornar-se os fantasmas de si mesmos, à procura de reaver a pura vida biológica ameaçada, de que se ausentou toda a dimensão espiritual. É a maior humilhação, a fantomatização em massa do povo português. Este Governo transforma-nos em espantalhos, humilha-nos, paralisa-nos, desapropria-nos do nosso poder de ação. É este que devemos, antes de tudo, recuperar, se queremos conquistar a nossa potência própria e o nosso país.


José Gil,  in Visão

terça-feira, 19 de março de 2013

Banda sonora para o inverno (25) - o regresso de Nick Cave às canções intimistas

Sem Mick Harvey, e sem a proeminência da guitarra, "Push The Sky Away" é um disco com mais espaço do que os clássicos de Nick Cave and the Bad Seeds e com uma temperatura diferente do delírio experimentalista dos Grinderman (projeto, na minha opinião, falhado, na medida em que não suscita o regresso do ouvinte a essas canções). Da mesma forma que Grinderman serviu para Cave abanar o seu corpo gingão e mostrar que, embora cinquentão, ainda tem força para pegar na enxada, também "Push The Sky Away" serve um propósito não necessariamente apaziguador: Nick Cave quer reedificar uns Bad Seeds atmosféricos e falsamente mansos. Na verdade, tudo aqui se toca em surdina, com teclados em loop e violinos que sobrevoam sem pousar.

O melhor resultado da concisão autoimposta, mas também da recusa do adorno, é "Jubilee Street", ou Cave a discorrer sobre uma rua de má fama sob um riff de guitarra ondulante. É uma canção em busca de clímax, mantendo debaixo de si um violino quase zumbido, abrindo espaço para versos finais com tanto de súplica como de libertação ("I am alone now, I am beyond recriminations/ Curtains are shut, the furniture is gone/ I'm transforming, I'm vibrating, I'm glowing/ I'm flying, look at me). Antes, "Waters Edge" anuncia-se com uma linha de baixo hitchcokiana: da sua janela, Cave observa jogos de sedução entre rapazes e raparigas na praia ("their legs to the world like bibles open"), para rapidamente passar a uma reflexão sobre o envelhecimento ("but you grow old, and you grow cold"). A acompanhá-lo, estão uns Bad Seeds subterrâneos, subtilmente introvertidos, interessados numa ocupação de espaço que dê primazia à melodia e à voz poética e introspetiva de Cave (ouça-se o discreto Fender Rhodes dedilhado a meio da belíssima "Mermaids").

"Push The Sky Away" é uma obra em que o músico australiano regressa aos seus temas essenciais, a saber: sexo, religião e liberdade. E de uma forma que, ao suscitar subliminarmente sucessivas audições, nos vai conquistando, primeiro pela inteligência e só depois pelo coração.


segunda-feira, 18 de março de 2013

"A Vida de Pi" - obra-prima de Ang Lee

O cinema de Ang Lee tem sido edificado com um pé na matriz popular do cinema clássico (à maneira de um William A. Wellman ou até de um William Wyler) e com o outro pousado no futuro (à semelhança de mestres como Steven Spielberg ou Robert Zemeckis). "A Vida de Pi" é o regresso ao seu cinema metafísico, que teve como paradigma o belíssimo "O Tigre e o Dragão".

O filme adapta o premiado romance de Yann Martel, que narra as vicissitudes de um jovem indiano que, após um naufrágio, se vê na imensidão do oceano Pacífico a bordo de um bote salva-vidas acompanhado de uma hiena, um orangotango, uma zebra ferida e um tigre de Bengala. Em breve estarão apenas Pi e o ameaçador tigre, e a única esperança de sobreviverem é descobrirem, de alguma forma, que ambos precisam um do outro.

Desenganem-se os cínicos e os céticos: a sinopse atrás apresentada é o pretexto para uma profunda obra filosófica que encena uma reflexão em torno do sentido da existência, da procura de Deus e da essência humana. É um filme para ver e rever.


domingo, 17 de março de 2013

Onde para a Ética na Justiça?


De acordo com o jornal i, para evitar ser preso Isaltino Morais já gastou 132 mil euros em recursos. Repito: 132 mil euros só com recursos!

E ainda haverá quem diga que, em Portugal, a Justiça é igual para todos?

terça-feira, 12 de março de 2013

Jorge Jesus revela na universidade que o seu cabelo homenageia a cabeleira de Sir Isaac Newton

Jorge Jesus deu ontem um colóquio na Faculdade de Motricidade Humana, onde explicou a sua "ciência".
Tal é o espírito científico de Jorge Jesus que confessou finalmente a razão de ser do seu penteado: homenagear a famosa cabeleira cinza-prateada de Sir Issac Newton, o físico que descobriu a lei da gravidade, grande referência na vida do treinador do Benfica. Jorge Jesus disse ainda que, no futuro, caso fique careca, não se importará, pois será uma maneira de homenagear Jorge de Sena, outro dos seus ídolos académicos.
in O Inimigo Público, 12/03/13

sexta-feira, 1 de março de 2013

Camilo Lourenço, a História e a utilidade económica


Um colega de universidade chamou-me a atenção para um comentário de Camilo Lourenço sobre professores de História no qual afirma que estes não são necessários à economia
Camilo Lourenço é um homem que tem feito carreira no comentário económico através de declarações provocadoras. Algumas, como esta, são infelizes; outras interessantes e acutilantes. (Num parêntesis, esclareço que apesar de nunca ter trabalhado com ele, fui publisher de uma revista - a Exame - de que fora diretor, pelo que posso dizer que a versão que por aí circula do seu afastamento por causa de um artigo sobre o BPN é... ficção). 
Se Camilo tivesse estudado Humanidades, sabia que a utilidade não pode ser a medida de todas as coisas e conheceria as críticas ao utilitarismo. Ocorre-me, até, que caso seja economista, Camilo possa conhecer essas críticas. E isso torna as coisas piores, porque significa que ele foi levado a dizer o que disse não por desconhecimento - o que conduz àquele pensamento cristão, "Perdoa-lhe Senhor, que ele não sabe o que diz" -, mas por convicção, o que eleva o debate a um novo patamar
O utilitarismo analisa as ações pela utilidade que têm ou virão a ter na produção de bem estar numa sociedade. Por exemplo, um utilitarista moderado dirá que os idosos produzem bem estar social através do exemplo, ou da integração social e da transmissão de conhecimentos e sabedoria. Já um radical - camilista? - dirá que um velho é um desqualificado porque já nada produz e só gasta dinheiro. 
"Não pode ser. Mas um licenciado em História é qualificado só por que tem um canudo?" pergunta Camilo. E a resposta é sim. É qualificado porque o reconheceram como possuidor de um conjunto de conhecimentos (se bem ou mal é outra discussão). Claro que a qualidade do seu trabalho pode ser melhor ou pior, mas dizer que licenciados em História, ou em Filosofia, ou em Clássicas ou em Literatura não têm qualificação só por terem um canudo - uma vez que não "têm utilidade no mercado de trabalho", é o mesmo que dizer que um idoso não tem utilidade porque só gasta dinheiro e não produz nada (algo que lembrou a um senhor economista no Japão). Ou, como diz Camilo, "Não tem utilidade para a economia".
A Economia é importante, Camilo, claro que é. Mas o mundo é mais do que a Economia. A mera racionalidade económica, se não for compensada por aspetos como caridade/solidariedade; amizade/companheirismo/amor; coesão/camaradagem/vizinhança entre muitas outras categorias não económicas (ocorre-me também a boa educação), é inútil.
Como já demonstrou o suspeito licenciado em História Rui Tavares (ontem, num artigo no 'Público') acresce que os licenciados em História têm utilidade para a Economia. E os licenciados em Filosofia também. Muitas empresas, por todo o mundo, contratam quadros destes cursos porque o conhecimento da história e do pensamento permite às empresas evitar erros.
Por exemplo, Amos Shapira, o CEO da Cellcom,a maior empresa de Cabo nos EUA, diz literalmente isto: "O conhecimento que uso como CEO pode ser adquirido em duas semanas... A principal coisa que os estudantes têm de aprender é como estudar e analisar as coisas, incluindo a História e a Filosofia". O design da Apple deve-se a um curso de caligrafia de Steve Jobs. Grandes vendedores dos EUA vêm de cursos de letras e de teatro. Em França, caro Camilo, Filósofos dão consultas a dirigentes de empresas, para os ajudar a ultrapassar certos dilemas. A própria utilidade das Humanidades na Economia é indiscutível e é reconhecida por fontes insuspeitas como a Harvard Business Review.
Porque qualquer licenciado em Filosofia diria que a teoria do crescimento constante da Economia é anti-natural (não há nada na natureza que cresça constantemente sem morrer). Qualquer licenciado em História sabe que o desequilíbrio entre a China e a Europa é bastante recente em termos históricos, pelo que tender-se-ia para o re-equilíbrio que está a acontecer. 
São coisas úteis para a sociedade, sobretudo se a sociedade não for formada por um conjunto de ignorantes.
Por: Henrique Monteiro

Breves notas sobre o cinema de Wong Kar Wai (6) - "Disponível Para Amar" (2000)

E, no ano da graça de 2000, Wong Kar Wai alcançou o zénite da sua (sétima) arte com a obra-prima Disponível Para Amar . É (mais) uma históri...