sexta-feira, 30 de setembro de 2022

Porquê a solidão?


Retomemos o ponto de partida: há que saber aceitar a solidão como atitude de vida. Isto não significa que devemos votar os outros à solidão ou aceitar a frieza da indiferença (nossa e dos outros). Há, pois, também que clarificar o que não significa a solidão aqui enaltecida, de modo a podermos demarcar com rigor a solidão desejável e que se deve cultivar do sentido comummente aceite.

A solidão como forma de autoconhecimento e condição necessária para a felicidade não deve ser confundida com: (i) desprezo pelos outros nem como uma forma dissimulada de auto-depreciação, (ii) com insensibilidade pelo sofrimento alheio ou pelo isolamento que resulta daquela postura eticamente reprovável, (iii) com menosprezo ou egoísmo, (iv) e, muito menos, com misantropia.

A solidão que devemos ser capazes de desenvolver interiormente é aquela que predispõe para a contemplação da Beleza (seja uma paisagem natural seja uma obra de arte), para a prática anónima da solidariedade (o altruísmo genuíno dispensa a publicidade para o bem que se faz) e para o autoconhecimento que, por seu turno, enterreira para amar sem barreiras.

quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Consumismo

 

O consumismo é inimigo da solidão que desejamos, pois incrementa a solidão que não devemos alimentar. Esta última forma de solidão advém do desejo intenso de ter e diminui a vontade de ser.

Ficamos presos à ânsia de se possuir mais bens materiais e a uma ilusória sensação de felicidade. Claro que não podemos ser felizes se não formos livres! Mas poder consumir desenfreadamente não é condição necessária, muito menos suficiente, para a liberdade. Pelo contrário, apenas nos torna uma espécie de produto em série da sociedade de consumo.

Se o livre-arbítrio estiver dependente do poder de compra, pense: qual será a percentagem de pessoas felizes?

quarta-feira, 28 de setembro de 2022

Compreender a solidão

 

Há que perceber a solidão, analisá-la, capacitando-nos com uma dádiva que apela ao conhecimento interior. A solidão não está a mais nem a menos. Ela não se instala para cobrar o mal que fizemos, muito menos para nos consciencializarmos de que nos afastámos dos outros, nos desvinculámos da comunidade e que passámos, filauciosos, a viver para nós próprios ou a olhar para o nosso próprio umbigo.

Há que receber a solidão como uma dádiva, deixá-la entrar como se de um entrenervo se tratasse. Ela também faz parte do edifício interior que, ao longo da vida, vamos construindo, embora nem sempre nos apercebamos, já que ela vive no imo ande a alma habita.

terça-feira, 27 de setembro de 2022

"Às Coisas Que Nos Fazem Felizes" - de Gabrielle Muccino


Amarcord, de Federico Fellini, 1900, de Bernardo Bertolucci, Era Uma Vez Na América, de Sergio Leone, e Cinema Paraíso, de Giuseppe Tornatore, são exemplos maiores (e inolvidáveis) de épicos dramáticos assinados por realizadores que só por essas obras mereciam figurar na lista dos melhores cineastas do século XX. 

Com As Coisas Que Nos Fazem Felizes, Gabrielle Muccino cria um filme que, claramente, se insere nessa excelsa linhagem do cinema italiano. Neste filme acompanhamos a história de quatro amigos ao longo de outras tantas décadas. Começa em 1982 e termina já na presente década, pretexto para Muccino revisitar acontecimentos em Itália e no mundo ocidental que marcaram incontornavelmente a memória coletiva.

Que não restem dúvidas: esta é uma longa-metragem poética, comovente, herdeira digna do melhor cinema clássico italiano.

segunda-feira, 26 de setembro de 2022

"28 1/2" - Gentrificação e cursos sem profissão, segundo Adriano Mendes


Há pouca informação disponível sobre esta longa-metragem de Adriano Mendes, mas o filme recomenda-se.

28 1/2 é uma pequena pérola para compreender certos problemas sociológicos que têm marcado as primeiras décadas do século XXI, nomeadamente a questão dos cursos superiores que, embora homologados e já com inúmeros licenciados, não encontram o reconhecimento da profissão no mercado de trabalho. Por outro lado, a longa sequência final, em que Adriano Mendes filma uma conversa num jantar de amigos, discute o problema da gentrificação na cidade de Lisboa que, literalmente, expulsa os lisboetas (ou muitos dos que lá querem trabalhar) para zonas periféricas marcadas pela exclusão social. 

A película, escrita e realizada com vontade e rigor,  marcará, com certeza, o ano cinematográfico português. Pena é ter sido ignorada pelo público e pela imprensa. 28 1/2 merecia a devida divulgação e visionamento.

domingo, 25 de setembro de 2022

"A Lança em Chamas" (1960) e "Telefone" (1978) - dois filmes menores de Don Siegel


Clint Eastwood homenageou Don Siegel (e Sergio Leone) no memorável western Imperdoável (1992). Tinha boas razões para tão respeitável gesto: Siegel foi (com Leone) tão somente o realizador que desenhou a imagem de marca de Eastwood (sobretudo, em Dirty Harry) e relançou a sua carreira já após os 40 anos de idade.

Embora seja um nome incontornável do cinema de ação, Siegel tem, na sua longa filmografia, alguns títulos menores, como, por exemplo, os dois que aqui se registam, curiosamente, veículos para os seus protagonistas. 

A Lança em Chamas é um western produzido no auge da fama de Elvis Presley, filmado com o rigor clássico dos grandes artesãos de Hollywood; é também um dos últimos filmes do período de ouro do género cinematográfico americano mais icónico.

Telefone é um thriller político típico dos anos da Guerra Fria, com Charles Bronson (na altura, talvez o ator mais popular da série B) no papel de um agente do KGB responsável por cumprir uma missão de risco nos EUA - eliminar um perigoso agente soviético que decidiu levar a cabo um ato terrorista, entretanto descontinuado pelo Kremlin. O filme arrasta-se num ritmo lento e penoso, desafiando continuamente os limites da paciência do espectador. Salva-se Lee Remick no papel de agente infiltrada do KGB em solo americano, parceira de missão de um Charles Bronson que nunca consegue estar à altura daquela diva do cinema clássico. 

sexta-feira, 23 de setembro de 2022

"Foxy Brown" - icónica Pam Grier


Foxy Brown é a personagem mais icónica dos blaxploitation movies. Realizado por Jack Hill, em 1974, é uma pequeníssima produção, com um argumento trapalhão e um punhado de maus atores, de onde sobressai uma enorme atriz. Em boa verdade, sempre que Pam Grier está em cena (na pele da heroína do título) o filme eleva-se do seu estatuto de menoridade, justificando a permanência da fita para além da iconoclasta década em que foi produzido.

Paradigma de um género que desapareceu (aqui e ali homenageado por cineastas superiores, como Spike Lee ou Quentin Tarantino), tem algumas cenas tão más que se tornam muito boas. A começar na sequência noturna de abertura, com um gângster gingão a tentar proteger-se de outros facínoras, passando pelo sangue que escorre das vítimas como tinta de aguarela.

Vinte e três anos mais tarde, Tarantino iria homenagear esta película, oferecendo, finalmente, a Pam Grier o filme que a atriz merecia. Chamar-se-ia Jackie Brown e é, para este escriba, a obra-prima de Quentin Tarantino.

quarta-feira, 21 de setembro de 2022

"A Cidade Turbulenta" - de George Marshall


A Cidade Turbulenta (no original, Destry Rides Again) é um dos westerns clássicos produzidos na década de 30 do século XX (o filme é de 1939), assinado por um brilhante artesão, George Marshall, e protagonizado pela versátil Marlene Dietrich, pelo sempre gentil James Stewart e por um vilão exemplar, o saudoso Brian Donlevy. Além de ser um filme de ação, é um objeto divertidíssimo (para o qual contribui - e muito - o chistoso Charles Winninger).

O xerife de uma pequena cidade é morto por um bandido que pretende controlar os rancheiros de gado da região. Rapidamente, o Mayor corrupto daquela povoação nomeia para novo xerife o ébrio mais popular do saloon local; mas este, contra todas as expectativas, assume o cargo com sentido de responsabilidade, recupera a sobriedade e contrata o filho de um antigo xerife e herói local, Tom Destry Jr., que, sob o manto de uma aparente ingenuidade, irá repor a ordem na cidade e combater a corrupção.

George Marshall foi um dos fundadores da linguagem cinematográfica como hoje a conhecemos. Realizou cerca de uma centena de filmes, desde a década de 20 (ainda nos tempos do cinema mudo) até ao término da década de 60. Merece ser redescoberto e A Cidade Turbulenta é um bom ponto de partida.

terça-feira, 20 de setembro de 2022

"Cassandra Crossing" - de George P. Cosmatos


A década de 70 do século XX foi pródiga na criação de um subgénero de filmes conhecido como filmes-catástrofe.

Cassandra Crossing, película de 1976 realizada por George P. Cosmatos (sim, o mesmo que assinou, em 1985, o execrável Rambo II: A Vingança do Herói), marcou o apogeu dessa categoria ao filmar a história de um terrorista contaminado com um vírus letal, que se esconde num comboio na estação de Genebra. O comboio acaba por ser lacrado e forçado a mudar de rota, com o propósito de colocar os passageiros em quarentena num antigo campo de concentração nazi.

Com um elenco repleto de vedetas (como era característico dos filmes-catástrofe), que inclui a participação do icónico professor de teatro Lee Strasberg, fundador do Actors Studio, realização segura e fotografado num esplendoroso tecnicolor, Cassandra Crossing envelheceu bem e continua a proporcionar cerca de duas horas de entretenimento inteligente e estranhamente atual. 



segunda-feira, 19 de setembro de 2022

"O Embaixador" - de J. Lee Thompson


J. Lee Thompson era já um realizador veterano quando assinou esta exortação pela paz no Médio Oriente, em particular em prol do diálogo entre israelitas e palestinianos.

O Embaixador, obra de 1984, é, talvez, o objeto fílmico mais explícito no seu propósito apologético do entendimento entre judeus e muçulmanos moderados como forma de unirem esforços contra os extremismos dos dois lados do conflito israelo-palestiniano. É certo que também se trata de um filme de ação, género no qual J. Lee Thompson sempre foi um mestre, mesmo quando tinha um orçamento muito aquém da ambição da obra (veja-se a cena de abertura, de cortar a respiração).

O Embaixador é um filme com um grande elenco: Robert Mitchum (no papel de um embaixador pacifista), Ellen Burstyn (numa exuberante meia-idade, mais bonita do que nunca) e Rock Hudson (naquele que foi o seu último filme, ainda imponente e em boa forma).

Há quanto tempo não se fazem longas-metragens assim, com objetivos comerciais, diretos ao osso, noventa minutos feéricos, mensagem política e filosófica que respeita a inteligência do espectador? 

sábado, 17 de setembro de 2022

Estado da Nação (36) - O Portugal de Costa, Família e Amigos no top ten... da pobreza


A pandemia fez subir para 2,3 milhões os portugueses em risco de pobreza ou exclusão social, o equivalente a 22,4% da população. Entretanto, os dados divulgados ontem pelo Eurostat confirmam este agravamento, indo até mais longe: mostram que Portugal passou a ser o oitavo pior da União Europeia na lista de países com maior risco de pobreza ou exclusão social em 2021.

Convém não esquecer, no entanto, que este é o país que, no início deste ano, quis dar ao PS maioria absoluta para (des)governar. 

Breves notas sobre o cinema de Wong Kar Wai (6) - "Disponível Para Amar" (2000)

E, no ano da graça de 2000, Wong Kar Wai alcançou o zénite da sua (sétima) arte com a obra-prima Disponível Para Amar . É (mais) uma históri...