quinta-feira, 30 de agosto de 2012

"4:44 Último Dia na Terra" - a obra-prima de Abel Ferrara

Descobri Abel Ferrara ainda durante a minha adolescência, nos últimos anos da década de oitenta. Curiosamente, numa altura em que o seu nome não era levado a sério pela mesma crítica que agora faz de cada novo filme daquele cineasta nova-iorquino um acontecimento. Ainda assim, via os seus filmes de baixo orçamento com algum fascínio, neles percecionando o alvor de um autor. "Fear City", "China Girl", "Cat Chaser" e "King Of New York" permanecem películas de culto a necessitarem de urgente reavaliação, face à credibilidade conquistada por Ferrara a partir da década de noventa, sobretudo graças a "Bad Lieutenent" (filme que o consagrou como legítimo herdeiro de Scorsese).

"4:44 Último Dia na Terra" é uma profundíssima reflexão em torno do sentido da existência, das escolhas que definem o que somos e da irreversibilidade das mesmas. Trata-se de uma fita complexa, soberbamente interpretada por Willem Dafoe e Shanyn Leigh, que assumem o papel de um casal a contas com a vida, o passado, o presente e o futuro que lhes espera após o apocalipse (sim, o futuro, já que a espiritualidade e a procura da redenção são traços comuns da demanda dos personagens criados por este cineasta). A Nova Iorque de Ferrara é preenchida por poucos personagens, todos eles reais, divididos entre os prazeres da carne e as necessidades espirituais. 

Após o visionamento da obra em análise, vem à mente uma questão essencial: será Abel Ferrara o último dos cineastas urbanos? Duas coisas são certas: (i) o filme deixa-nos sem fôlego; (ii) é o melhor filme deste verão. 
Trailer de "4:44 Último Dia na Terra"

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Banda sonora para o verão (23) - "Lost In The New Real"

Arjen Anthony Lucassen é um músico holandês de 52 anos, corresponsável pelo ressurgimento e revitalização do rock progressivo nos últimos dez anos. No início da sily season editou um ambicioso disco duplo, "Lost In The New Real". Trata-se de uma obra conceptual, cuja história sci-fy é narrada de forma arrepiante por Rutger Hauer (ator de culto, também holandês, que na década de 80 trabalhou com os últimos cineastas clássicos em filmes como "Fim de Semana de Osterman", de Sam Peckinpah, "Blade Runner", de Ridley Scott, "A Mulher Falcão", de Richard Donner, "Flesh and Blood", de Paul Verhoeven, "Terror na Auto-Estrada", de Robert Harmon, "Fúria Cega", de Philip Noyce, entre outros filmes de culto): num futuro indeterminado vive-se uma distopia cibernautica que anulou a dor e a morte, mas onde a perceção humana do real é manipulada (aliás, a questão central do disco é saber distinguir o real do virtual) e o preço a pagar é a hipervigilância de um big brother que acompanha todos os nossos passos, decide quem pode procriar e as escolhas que podemos fazer. Ah, nesse espaço e tempo (o new real que dá nome ao álbum) já tudo foi inventado e está registado numa imensa base de dados (ouça-se a canção deliciosamente retro Pink Beatles In A Purple Zeppelin). Deprimente, sobretudo para quem precisa de criar para se sentir vivo (o paraíso artificial é viajar em sonhos por múltiplas realidades).

É um pesadelo orwelliano, contaminado pelas distopias digitais imaginadas por Philip K. Dick. E já que de música se trata, pois bem, fiquem sabendo que o disco de Arjen Lucassen é um autêntico caleidoscópio musical que apetece ouvir vezes sem conta.  

Arjen Anthony Lucassen - "Lost In The New Real"


quinta-feira, 23 de agosto de 2012

"Se isto é um homem" - obra incontornável de Primo Levi

Escrito entre o final de 1945 e o início de 1947, ou seja, imediatamente após os factos narrados, Se isto é um homem é, antes de mais, a narrativa seca e minuciosa, a crónica submissa e por vezes intencionalmente humilde, de uma experiência extrema: um ano vivido por Primo Levi (1919-1987) no campo de concentração de Auschwitz, vítima e testemunha do maior horror que o século XX produziu. E um horror que ressalta em toda a sua evidência "natural", justamente pela firme recusa por parte do autor de qualquer forma de amplificação retórica, de qualquer forma de "fingimento" literário, ainda que legítimo; um horror nu e cru, e totalmente autêntico: por isso mesmo, tanto mais aterrador, tanto mais iniludível e impossível de exorcizar.

Trata-se definitivamente de um testemunho sobre a condição humana, sobre os seus limites e os seus insuspeitáveis recursos, sobre a sua obstinada capacidade de conceber o bem e sobre a fragilidade das suas defesas perante a sugestão do mal. Não é tanto a relação carrasco-vítima que interessa a Levi (os carrascos raramente aparecem no livro, longínquos e ausentes, encerrados numa dimensão quase estranha), mas sim a que se cria entre uma vítima e outra, nas absurdas hierarquias internas, nos ingénuos conluios com o poder e nas igualmente ingénuas esperanças numa humanidade sobrevivente, no escárnio dos prisioneiros "veteranos" nos confrontos com os "noviços", ou de alguns grupos étnicos nos confrontos entre si.

E é no lúcido registo da terrível desumanização a que todos, sem exceção, se submetem no campo de concentração, que encontramos a mensagem da mais elevada e sofrida ética contida em Se isto é um homem. O juízo moral, naturalmente, não invalida nem ignora as responsabilidades individuais e coletivas, conseguindo sempre, no entanto, avaliá-las na base simples mas difícil da consciência humana: o inapelável tribunal dos justos que se encontra no fundo de cada um de nós, e que Primo Levi consegue inteira e miraculosamente trazer à luz do dia. 

terça-feira, 14 de agosto de 2012

A urgência do silêncio na esplanada

Gostava de entender o outro, mas às vezes não chego lá. Há um outro que me atazana o juízo nestes dias de verão, porque ao fim da tarde, a melhor hora para contemplar em sossego o céu a alaranjar-se no oceano, insiste em ouvir música (?) minimal eletrónica, de graves intensos, que estremecem a areia, desfazem as conchas e afugentam os escaravelhos. Esse outro, que não concorda comigo, é uma multidão que se abana em fato de banho e biquíni num bar de madeira, emborcando bebidas coloridas, gritando inanidades aos ouvidos, enquanto o sol - pobre coitado que prefere o silêncio - lá se esconde no horizonte, lamentando que a natureza não lhe permita que acelere o processo. 

Devem render bastante estas licenças de décibeis, atendendo à propagação de festas do género nos últimos verões. E se tantos concelhos se orgulham de ter praias com bandeira azul, questiona-se que raio de classificação é esta que não contempla a poluição sonora. 

Se é assim ao lusco-fusco, durante o dia a coisa não melhora muito. Os veraneantes são maioritariamente citadinos e devem andar tão viciados no tráfego que, só para matar saudades, enquanto descansam na praia, regalam-se a ouvir o som de fundo das motas de água. São cada vez mais os pontos de entrada desses hediondos brinquedos. Quase desapareceram as gaivotas. Não me refiro aos pássaros, outros pobres coitados, mas das pequenas embarcações a pedal, demasiado simples para um mundo tecnológico. Gosto dos surfistas, que desafiam o mar com uma prancha, mas nunca desses demónios a motor, que empestam o mar de gasolina e barulho, deixando-o, tenha a certeza, um pouco menos azul.

O último grito da tecnologia é o silêncio - esse é o verdadeiro luxo. Mas é um luxo desprotegido e em vias de extinção porque, por mais que se levante o volume do silêncio, o ruído ouve-se sempre mais alto. O silêncio não se pode gritar.

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

"Polissia" - um filme direto ao osso

Para que não restem dúvidas: "Polissia", magistralmente realizado por Maïwenn (que também participa como atriz), é um filme fabuloso. Posto isto, podemos ir direto ao osso.

Acompanhamos uma brigada de proteção de menores em França, imergindo sem rede num universo extremamente duro, difícil, nauseabundo e aversivo. Tal como a personagem interpretada pela própria realizadora também nós vemos através de uma lente a rotina de polícias que lutam diariamente contra pesadelos; sentimos no seu quotidiano o terror e a frustração por saberem que, muitas vezes, têm o seu grito de presença abafado; imaginamos quão difícil deve ser regressarem a casa, ao final do dia, com a memória de tantas crianças tratadas de forma indigna por adultos com - como diz um dos personagens da película - complexos de Édipo mal resolvidos; crianças a quem foi roubada a infância, obrigadas a participar no mundo insano e criminoso de adultos com fixações execráveis. O título do filme (com a palavra polícia escrita com dois 'ss') remete simultaneamente para o erro ortográfico naturalmente cometido por crianças a aprender a escrever e para os desejos distorcidos/doentios de pedófilos e de pais que não têm competências para cuidar dos seus filhos.

"Polissia" é uma obra brutal na verbalização dos casos das crianças vítimas de abusos e maus tratos, mas não menos forte quando nos embrenhamos na intimidade dos polícias. Estamos, portanto, perante um filme que se enquadra numa matriz realista em que poucos cineastas se têm destacado. Maïwenn consegue a proeza de agarrar o espectador do princípio ao fim, num filme de câmara cru, ousado e que nunca nos dá tréguas. Venceu justamente o prémio do júri do Festival de Cannes de 2011.

Trailer de "Polissia", de Maïwenn

Breves notas sobre o cinema de Wong Kar Wai (6) - "Disponível Para Amar" (2000)

E, no ano da graça de 2000, Wong Kar Wai alcançou o zénite da sua (sétima) arte com a obra-prima Disponível Para Amar . É (mais) uma históri...