segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Banda sonora para o outono (40) - Sweet Billy Pilgram: "Wapentak"


Agora reduzidos a um duo, os Sweet Billy Pilgrim aproveitam para ensaiar uma viagem alternativa às texturas sónicas complexas (e sempre surpreendentes), rumo a canções simples e despojadas dos arranjos épicos que caracterizaram parte dos trabalhos anteriores.

Wapentak é um disco de canções gravadas quase sempre num registo acústico para realçar a melodia e a voz. E que canções, senhoras e senhores! Ouça-se Ash on the blacktop, Asking for a friend ou A shelter of reeds e entenda-se por que esta transformação intencional no som não representa uma descaracterização do projeto estético da banda, mas sim a exploração de uma música mais orgânica, romântica e melancólica. E, por que não, outonal.

quinta-feira, 2 de julho de 2020

Pablo Larraín (2) - "O Clube" (2010)


Numa esquecida aldeia costeira, algures no Chile, há uma casa que alberga quatro padres que a Igreja Católica quer esconder. São acompanhados por um freira que, à semelhança dos padres (pedófilos, violadores, homossexuais, confessores de torturadores), foi ostracizada por ter cometido pecados mortais. Todos apostam em corridas de galgos e convivem na superficial ilusão de que vivem em santidade. No entanto, transportam na alma um mal sem cura, a inconsciência da perfídia, a crença falsa de que tudo o que fizeram está justificado por Deus. Para eles, então, não há solução possível. 

Entretanto, recebem um novo hóspede, tão sinistro quanto eles, que comete suicídio à porta de casa. A Igreja envia um padre/psicólogo para investigar o que, de facto, aconteceu, mas que cedo descobre que, ali, naquela casa de horrores não há lugar para qualquer forma de redenção e que o mal absoluto se instalou confortavelmente. Deus há muito que parece ter-se esquecido daqueles homens. Ou, então, um universo que admite a possibilidade do mal é incompatível com o Deus teísta, não havendo teodiceia que justifique as ações daqueles homens.

domingo, 28 de junho de 2020

Pablo Larraín (1) - "Tony Manero" (2008)


Há um momento no filme Tony Manero em que o protagonista está na sala de estar de uma idosa a quem ele ajudou a regressar a casa, após uma agressão, fundamental para percebermos esta obra de uma violência em surdina, sempre latente: a mulher pergunta-lhe, com algum encanto, se ele sabia que os olhos do general Pinochet são azuis. Inesperadamente, Raúl Peralta - bailarino amador obcecado pela personagem interpretada por John Travolta em Febre de Sábado à Noite (1977), de John Badham - espanca a mulher até à morte. Trata-se de uma das cenas iniciais desta fita maior de Pablo Larraín, que nos coloca no Estado de Sítio que o Chile vivia nos anos 70 do século XX durante a ditadura feroz de Pinochet. Segundos antes, a mesma mulher tinha-lhe oferecido uma lata de atum fora de prazo, convidando-o a instalar-se confortavelmente no sofá, em frente a uma pequena televisão a cores. É esta novidade tecnológica, na altura, que reinstala o artifício: um regime impõe uma felicidade encenada e a cores. Raúl, homem de meia-idade frio e amoral, prefere o sonho americano vendido por Hollywood ao ritmo do disco sound.

Numa outra cena, a proprietária do bar de bairro, onde Raúl tenta recriar as coreografias do filme de Badham, diz-lhe que ele precisa de encontrar um emprego, até porque está a envelhecer e, um dia, ninguém se vai lembrar de Tony Manero e daquela música que não passa de uma moda passageira. Raúl responde: "Não é uma moda." É esta incapacidade em ler o real que faz de Raúl/Tony mero simulacro de um país em perda de identidade cultural. Aliás, o protagonista prefere a pop industrial dos Bee Gees à folk nacional.

Analisemos ainda outro momento do filme: Raúl vai ao cinema rever pela enésima vez Febre de Sábado à Noite, mas o filme já saiu de cartaz e foi substituído por outra película com Travolta, desta vez Grease (1978), de Randal Kleiser. Raúl não gosta dos personagens nem das canções, e descarrega a sua fúria no projecionista, assassinando-o e saindo da cabine de projeção com a bobine do filme de Badham. Em casa, procura ver os fotogramas à luz do candeeiro, como se aquela fosse a realidade para onde, definitivamente, Raúl se transmutou. 

Entretanto, este Tony chileno, que sonha em participar num concurso televisivo de imitadores de Travolta, vai deixando atrás de si um rasto de cadáveres, pessoas que vai assassinando como meio de materializar o sonho americano comercializado pelo regime chileno.

Raúl é desalmado, cruel e impiedoso; embora impotente, seduz a filha da amante; não hesita em eliminar a concorrência de outros imitadores, defecando num fato branco igual ao do Travolta dançarino de Febre de Sábado à Noite. Sempre de câmara à mão e imagem granulada, Larraín desconstrói a ditadura de Pinochet a partir de uma certa perceção simbólica do icónico filme de Badham.


sábado, 27 de junho de 2020

"Da 5 bloods" - apologia da inter-racialidade


Descobri o cineasta Spike Lee com o filme Do The Right Thing, corria o ano de 1989 e estava a terminar o liceu (por onde anda esta palavra, verdadeira referência identitária de uma adolescência quase adulta?). Alguns críticos referiam-se a Spike Lee como o Woody Allen negro, mérito das suas primeiras obras (She's Gotta Have It, de 1986, e School Daze, de 1988), onde, sendo já possível encontrar as marcas distintivas do seu cinema (e que iria apurar em obras posteriores), conhecíamos personagens urbanas intelectuais de classe média, as suas relações afetivas e dilemas existenciais embrulhados numa estética próxima dos primeiros clássicos do realizador de Annie Hall (1979) e Manhattan (1979). Rever hoje She's Gotta Have It ou Do The Right Thing é redescobrir comédias frescas, ousadas e, acima de tudo, livres. Sim, as melhores Spike Lee joints são aquelas em que se sente que o realizador está - à semelhança de Allen, Coppola, Kubrick ou Tarantino - a fazer realmente o filme que queria com total liberdade criativa.

Estamos em 2020 e o cinema já não é sinónimo de sala escura e grande ecrã. Spike Lee disse numa entrevista recente que fica estupefacto quando os seus alunos de cinema lhe contam que viram épicos de David Lean no telemóvel, e é essa a sensação do cinéfilo ao ver que o novo filme do autor de Jungle Fever (1991) foi concebido para a Netflix e não para o grande ecrã. Mas Da 5 bloods é cinema autêntico: uma comédia trágica americana filmada com o rigor e a sabedoria de um artista já veterano e o desprendimento experimental do jovem que assinou Do The Right Thing há mais de 30 anos.

Quatro velhos amigos, irmãos de armas na Guerra do Vietname, regressam a este país, 50 anos depois, para resgatarem o corpo de um soldado e recuperarem as barras de ouro que esconderam na selva vitenamita. Spike Lee intercala a narrativa principal com imagens de arquivo e com flashbacks dos cinco camaradas no inferno da guerra mantendo os atores sem qualquer rejuvenescimento (ao contrário, por exemplo, do artificialismo digital de O Irlandês (2019), de Martin Scorsese).

Que não restem dúvidas: este é o Spike Lee pregador, historiador especialista em african-american history, intelectual num perpétuo estado de angústia, mas também o artista otimista que vê claramente que Deus é Amor, que Ele está na beleza das canções de Marvin Gaye, na inter-racialidade e que só o Amor nos pode salvar enquanto indivíduos e enquanto espécie. Ah!, e há um Delroy Lindo no papel da sua vida. Só por ele, e pela garra da sua interpretação, já valia a pena ver este digno sucessor de BlacKkKlansman (2018) e - por que não dizê-lo - Apocalypse Now (1979), de Francis Ford Coppola.

sexta-feira, 26 de junho de 2020

"Feliz dia para morrer" - híbrido inútil de Christopher Landon


Há filmes assim, fabricados aparentemente sem propósito e sem rumo definido. Sim, porque se a finalidade de Feliz dia para morrer for entreter a baixo custo e enriquecer os seus investidores, a fita não parece sequer cumprir tais metas (embora os resultados no box office tenham revelado o oposto).

Trata-se de um produto híbrido - ora parece filme de terror, ora parece thriller e, por vezes, não se quer levar a sério (o que não seria mau) fingindo ser comédia (e a escatologia mais reles também passa por aqui).

E, no final, era apenas uma variação inútil do clássico de Harold Ramis, O feitiço do tempo.

P.S.: Escrevi este breve texto em 2018 e, entretanto, o filme em análise foi objeto de uma sequela assinada pelo mesmo realizador e com a mesma protagonista. Trata-se de um daqueles casos em que a réplica (desta vez a brincar com o clássico de Robert Zemeckis, Regresso ao futuro II) é bem melhor do que o modelo original, sendo um digno objeto de puro entretenimento.

quarta-feira, 24 de junho de 2020

"The Assassination of Gianni Versace: American Crime Story"


A segunda temporada da série "American Crime Story", do genial escritor e produtor Ryan Murphy, é um autêntico épico televisivo americano em 9 partes. Construído sob a forma de um gigantesco puzzle onde as peças se vão encaixando ao longo dos episódios, a narrativa nunca se torna redundante, respeita a singular complexidade das personagens e tem a originalidade de se centrar no elemento mais repugnante (e complexo) desta tragédia americana.

terça-feira, 12 de maio de 2020

Banda sonora para tempos de pandemia (2) - Moon Halo: "Chroma"


Para os puristas do pop-rock certeiro, com pinceladas de rock progressivo, que há muito esperavam por um disco essencial sem canções a mais, aí está (em boa verdade, desde o início do ano) uma pérola que marcará, de modo indelével, as edições discográficas de 2020.

"Chroma", do projeto Moon Halo, liderado por Iain Jennings (dos Mostly Autumn) e Marc Atkinson (dos Riversea), está cheio de (apenas) boas canções. Ouça-se "Seize the day", "What's your name"ou "Rise up" e perceba-se porque é que este é um álbum viciante.

sábado, 9 de maio de 2020

"Um Pequeno Favor" - Darcey Bell, mais uma autora empenhada em imitar Gillian Flynn e Patricia Highsmith

Se Gillian Flynn já mereceu o estatuto de legítima herdeira (na forma e no conteúdo) do estilo narrativo de Patricia Highsmith, Paula Hawkins e Darcey Bell mais não são do que artesãs de sucedâneos de marca branca travestidas de autoras-sensação do momento.

Na verdade, a densa e complexa perversidade, o intenso negrume que contorna a alma humana (e que Flynn tão bem tem conseguido replicar nas suas obras), em Um Pequeno Favor (tal como na obra que popularizou Paula Hawkins, A Rapariga no Comboio) fica reduzido a um grosso traço esquemático que tudo revela e nada esconde. Entediante!

Nota final: Curiosamente, o livro de Bell inspirou uma excelente adaptação cinematográfica hitchcockiana assinada por Paul Feig, provando, uma vez mais, que nem sempre o livro é melhor do que o filme. Há livros que, aparentemente, nasceram para servir esse propósito, o de germinarem bons filmes. De resto, Hitchcock fê-lo, exemplarmente, ao longo da sua extensa filmografia.

domingo, 19 de abril de 2020

"O guarda-costas e o assassino" - reciclagem exemplar de códigos de género


Patrick Hughes recupera da melhor forma os códigos do buddy movie, que teve nos anos 80 do século passado, o seu melhor e mais produtivo filão. Assim, de repente, recordo películas exemplares do paradigma: 48 horas (Walter Hill, 1982), Fuga à meia-noite (Martin Brest, 1988) e Arma mortífera (Richard Donner, 1986).

A química entre Ryan Reynolds (o guarda-costas) e Samuel L. Jackson (o assassino) funciona em pleno e os flashbacks são gloriosos.

Um excelente entretenimento, portanto.

domingo, 12 de abril de 2020

Páscoa 2020


A Páscoa é a celebração do amor e da renovação da esperança revelada por Jesus Cristo e que o Papa Francisco tão bem sintetizou recentemente: «Não pensemos só naquilo que nos falta, mas no bem que podemos fazer. Porque a vida é um dom que se recebe doando-se. E porque a maior alegria é dizer sim ao amor, sem se nem mas».

No momento tão difícil que atravessamos, a Páscoa será celebrada de forma diferente. A Páscoa de 2020 transmutar-se-à nas «pessoas comuns», como lhes chamou o Papa. «Aquelas que estão hoje a escrever os acontecimentos decisivos da nossa história: médicos, enfermeiros, trabalhadores dos supermercados, pessoal de limpeza, curadores, transportadores, forças policiais, voluntários, sacerdotes, religiosas e muitos - mas muitos - outros que compreenderam que ninguém se salva sozinho». 

Neste dia 12 de abril de 2020, não haverá procissões com imagens da Paixão de Cristo nem celebrações com igrejas cheias. Cristo estará nos hospitais com os doentes e com os profissionais de saúde, nos supermercados com os trabalhadores, nos campos com os agricultores, no mar com os pescadores, nos transportes com os motoristas e nas ruas com trabalhadores da limpeza e com as forças de segurança. Será uma Páscoa, mais que nunca, verdadeira.

sábado, 11 de abril de 2020

Banda sonora para tempos de pandemia (1) - Epic Tantrum: "Abandoned in the stranger's room"


Em tempos de confinamento e isolamento social, recolhemos às nossas casas, tornando-as, literalmente, o mundo. O nosso mundo.

Sob a égide deste novo paradigma existencial, continuamos a precisar de arte (quase) como de pão para a boca. É talvez na arte (e na religião) que encontramos e (re)criamos o paraíso perdido, ainda que (sempre) com a perspetiva do inferno. 

Tais cenários (pre)ocupam e (pre)enchem o primeiro disco (premonitório) dos nova-iorquinos Epic Tantrum. 

Da fabulosa capa às letras e à mescla de rock progressivo, com funk, soul e heavy-metal, "Abandoned in the stranger's room" é música para ensandecer em delírios catárticos que podem bem ser o antídoto para quem ainda acredita que o mundo vai voltar a ser como na era pré-COVID-19.

quarta-feira, 8 de abril de 2020

"Guerra Americana", de Omar El Akkad - o futuro, hoje


Omar El Akkad é um jornalista e autor premiado que viajou por todo o mundo para cobrir as mais importantes histórias reais (notícias) das últimas duas décadas: guerra no Afeganistão, julgamentos militares em Guantánamo, revolução da Primavera Árabe no Egito, para nomear apenas alguns acontecimentos que foram registados à luz das suas lentes translúcidas de jornalista maior.

El Akkad estreia-se na ficção com um grande romance americano, aspiração de quase todos os candidatos a escritor em terras do Tio Sam.

A história de "Guerra Americana" tem início em 2075, tendo por protagonista Sarat Chestnut, uma orfã de guerra. Os EUA estão, nessa altura, a travar a sua Segunda Guerra Civil, com os estados do norte e (alguns) do sul divididos quanto à proibição do consumo de combustíveis fósseis. Forçada a viver num campo de refugiados, Sarat rapidamente começa a ser moldada por esse tempo e lugar até que, finalmente, pela influência de um misterioso conspirador sulista, se transforma numa letal, doutrinada e convicta terrorista.

Que não restem dúvidas acerca da acutilância e atualidade desta obra visionária onde o autor transfigura, de modo pertinente e ambicioso, inúmeras marcas do tempo presente num romance pensado e construído ao milímetro, suportando-se numa narrativa de cariz realista, aqui e ali intercalada com relatos jornalísticos e depoimentos históricos (ficcionados, é claro).

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

"A Despedida" - os bons afetos, numa película delicada de Lulu Wang


Nomeado para dois Globos de Ouro, A Despedida baseia-se numa história pessoal da realizadora Lulu Wang, aqui representada pela estrela sino-americana Awkwafina, uma jovem adulta, Billi de seu nome, filha de emigrantes chineses nos Estados Unidos da América, à beira de ser despejada do seu apartamento e sem perspetivas de futuro em terras do tio Sam. Quando recebe a notícia de que a sua avó, Nai Nai, padece de uma doença fatal, Billi discorda da decisão da família de ocultar a enfermidade à matriarca; contudo, alinha na encenação de montagem apressada de um casamento como pretexto para a reunião da família na China. Aí, é tempo de revisitar as raízes há muito recalcadas de uma infância longínqua e idílica. 

A realização de Lulu Wang é delicada, claramente à procura de não sobrepor um qualquer olhar estético aos personagens e à essência - simples - do argumento. Por vezes, lembra o Ang Lee de O Banquete de Casamento (1993), mas mais pretensioso e sem o sentido de humor e a ousadia deste. Acompanhado por uma discreta mas belíssima banda sonora, é um filme agradável sobre o desenraizamento, embora demasiado leve para ser mais do que uma passagem pelo álbum de família da cineasta.

Breves notas sobre o cinema de Wong Kar Wai (6) - "Disponível Para Amar" (2000)

E, no ano da graça de 2000, Wong Kar Wai alcançou o zénite da sua (sétima) arte com a obra-prima Disponível Para Amar . É (mais) uma históri...