segunda-feira, 31 de julho de 2017

"Jogo de Damas" - improvisações sobre a perda


Patrícia Sequeira, realizadora com larga experiência no universo televisivo, assina em Jogo de Damas uma espécie de Os Amigos de Alex no feminino, mas sem a caução identitária (exceção feita ao uso da canção Amanhã é sempre longe demais, gravada em 1989 pelos Rádio Macau) do filme que Lawewnce Kasdan realizaou em 1983.

Cinco mulheres reúnem-se após o funeral de uma amiga em comum. Ao longo de uma noite partilham segredos e refletem sobre o sentido das suas vidas.

Jogo de Damas tem uma premissa sedutora, embora desperdiçada precisamente devido ao exercício de improvisação das atrizes que, paradoxalmente, nunca penetra além da superfície do lugar-comum, ganhando em artifício televisivo o que perde em espontaneidade. É, aliás, esse o calcanhar de Aquiles da conceção de Patrícia Sequeira: o dispositivo televisivo nunca se revela capaz de disfarçar a ambição cinematográfica. Não é Ingmar Bergman ou George Cukor quem quer.

domingo, 30 de julho de 2017

"Um Presente do Passado" - um filme por todas as vítimas de bullying

Um Presente do Passado é uma película escrita, realizada e interpretada por Joel Edgerton, ator australiano que se tem destacado por atuações intensas em dramas épicos da última década (por exemplo, Warrior, de Gavin O'Connor, e Exodus: Deuses e Reis, de Ridley Scott).

Um Presente do Passado parece ter como propósito homenagear todas as vítimas de bullying na infância, encenando uma refinada vingança aos seus opressores. E quem são estes, hoje? Líderes, homens de negócios, respeitáveis chefes de família que, capciosamente, continuam a ascender no mundo do trabalho, instrumentalizando, humilhando e afastando outros do seu caminho. Edgerton parece querer sentenciar que uma vez bully, para sempre bully.

E que fita Edgerton assina! Câmara discreta, mas sempre no lugar certo e com o movimento adequado, o thriller insinua-se no limiar da implosão e jamais se sobrepõe ao drama familiar. É essa sugestão, que nunca se impõe, que dá a Um Presente do Passado um toque de classe (quase) à altura do cinema de Sidney Lumet ou Joseph Ruben. Se Edgerton é também um cineasta a ter em conta, essa é a possibilidade que este objeto deixa em aberto.

sábado, 29 de julho de 2017

Estado da Nação (18) - Alguém falou em "jobs for the boys"?

Para rir:

Ana Pinho entra para uma Secretaria de Estado criada de raiz para si: a da habitação. Arquiteta, foi comissária da Carta Estratégica de Lisboa em 2009, quando António Costa era Presidente da Câmara Municipal de Lisboa.

António Mendonça Mendes é o novo Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais. Este ilustre político é irmão da Secretária-Geral-Adjunta do PS e antigo chefe de gabinete da então Secretária de Estado dos Transportes, Ana Paula Vitorino, hoje Ministra do Mar, mulher do Ministro-Adjunto Eduardo Cabrita.

Alguém falou em jobs for the boys?

sexta-feira, 28 de julho de 2017

Estado da Nação (17) - Alguém falou em remodelação no Governo?

Depois dos recentes casos de Pedrógão e de Tancos, António Costa optou por uma pseudo-remodelação na geringonça, que afetou somente algumas Secretarias de Estado e teve por pretexto o pequeno escândalo das borlas oferecidas pela GALP a elementos do Governo para irem assistir a jogos de futebol em França. É um caso mais futebolístico que político, mais sandoscas e bejecas do que São Bento, mas reflete, em todo o seu provincianismo tosco, o provincianismo torpe da politiquice nacional.

domingo, 23 de julho de 2017

[em julho, pela manhã]

gotículas de orvalho
rompem a luz matinal
em plena alvorada de estio.
declinam, inocentes
no seu propósito de servir
a natureza em seu delicado afazer.
sesmadas, deixam-se amparar
por terra seca carente de assossego
outoniço na sua essência
em busca incessante pela renovação.

no fundo, o verão quer ser outono
sendo ele próprio perecimento do ser.
a folha quer-se brilhante,
em tons dourados
e anseia pela aproximação à terra
cansada do semestre de afastamento
e a sonhar com o regresso ao seu imo
onde a alma se faz carne.

desejo, por isso, a superfície interior
na descoberta do sentido
à frente dos meus olhos.
Ele está junto a mim
na mão que desliza
delicada e ternamente
sobre o meu braço
no livro ao colo da passageira
à minha frente
no desassossego da criança que passa
no rosto trémulo de quem se aproxima da morte
na consciência da finitude
no mar que se espraia em sonho diurno
no renascer ilusório de cada ano que principia
no transcendente que emana de cada quadro de Van Gogh
no piano do Bill Evans
na voz de Bing Crosby
em partituras de Chopin
em canhenhos de Norman Mailer
em fotografias de Sebastião Salgado
nos filmes do John Ford (em todos!)
nos esquissos de Da Vinci
no pregão da peixeira à procura de freguês
no gesto seguro do engraxador
no cachimbo de Bertrand Russell
na criança que foi Rabindranath Tagore
e no colo de sua mãe,
no meu filho.

Regresso à gotícula de orvalho
em manhã cinzenta, em julho ameno,
não pela sua indiferença
mas pela complexa simplicidade da sua necessidade.

domingo, 16 de julho de 2017

"Hora de Vingança" - regresso dececionante de Chuck Russell


Nos anos 90 do século XX, Chuck Russell parecia surgir como um legítimo precursor de uma espécie de nouvelle vague do cinema de ação, na senda de realizadores como os irmãos Ridley e Tony Scott, Joel Schumacher, Quentin Tarantino ou até o grande Walter Hill. Filmes como A Máscara (1994) e Eraser (1996) prometiam isso mesmo.

O recente Hora de Vingança (2016) falsifica tal conjetura. Nesta fita série B, Chuck Russell dirige um John Travolta, muito mal caracterizado, na pele de um homem que planeia uma espiral de vingança contra o gang que assassinou a mulher. A seguir, o filme derrapa para uma trama política de cartilha e a anos-luz dos filmes dos cineastas referidos anteriormente.


quinta-feira, 13 de julho de 2017

Para refletir

It is not what the man of science believes that distinguishes him, but how and why he believes it. His beliefs are tentative, not dogmatic: they are based on evidence, not on authority or intuition.
Bertrand Russell (1872-1970)

terça-feira, 11 de julho de 2017

Banda sonora para o verão (39) - Big Big Train: "Grimspound"


Apenas um ano depois do lançamento de Folklore, a banda mais inglesa dos últimos 20 anos está de regresso com um disco mais complexo e difícil: Grimspound.

Inspirado na vida de um piloto inglês da I Guerra Mundial, o novo álbum reúne um conjunto de canções que exigem audições atentas e sucessivas, mas que, progressivamente, se vão entranhando.

A canção de abertura, Brave Captain, é uma engenhosa tapeçaria de harmonias que figurarão, decerto, na memorabília dos clássicos mais refinados do rock progressivo. No entanto, destaquemos aqui a canção mais curta, pastoral e delicada do disco: Meadowland.

domingo, 9 de julho de 2017

Banda sonora para o verão (38) - "The Big Dream": o 2º tomo da trilogia Lonely Robot


John Mitchell é um artista responsável por muitos projetos musicais (It Bites, Arena e Frost, por exemplo), todos dignos de nota e tendo em comum o lado concetual de álbuns pensados e compostos com razão e emoção em doses equilibradas. The Big Dream é a segunda parte do seu projeto mais pessoal até à data, Lonely Robot.

The Big Dream é, então, o digno sucessor de Please Come Home (álbum que contou com preciosas colaborações de Peter Cox e Nik Kershaw). É um disco riquíssimo em melodias prog-rock, que dão continuidade à história de ficção científica inciada no CD anterior. Desta vez, o astronauta desperta de um sono criogénico para descobrir que, aparentemente, já não está no espaço, mas sim num bosque e rodeado por pessoas com cabeças de animal. E mais não é preciso desvendar. Agora é ver (o singular design gráfico), ler (o livreto) e, sobretudo, ouvir canções memoráveis, como In Floral Green e The Divine Art of Being.


sexta-feira, 7 de julho de 2017

Banda sonora para o verão (37) - "Confessions from the south", de Sandy Kilpatrick and The Origins Band


Confessions from the south é uma obra intensa, quase religiosa, assinada por um músico escocês a viver em Portugal há mais de uma década.

Estamos perante um sentido ato de amor a Portugal (ilhas incluídas), país onde o pássaro da democracia voa num perpétuo abraço fraterno à liberdade. Ora, é esta encantada e encantatória ideia de liberdade que motiva Sandy Kilpatrick a compor canções emocionais (quase litúrgicas!) como Whispering wind, The delphic oracle e Stand united with your brothers.

O verão começa aqui, num CD (e num país) que é um autêntico oásis de felicidade.

quinta-feira, 6 de julho de 2017

"Terra Violenta" - Western despretensioso de Ti West

Filme inédito nas salas de cinema portuguesas, Terra Violenta resulta num bom entretenimento, que traz à memória os velhos clássicos do western série B (e aqui ou ali com pinceladas de western spaghetti).

Paul (interpretado pelo sempre empenhado Ethan Hawke) é um viajante solitário de passagem por Denton, uma terriola esquecida no Texas e apelidada pelos locais como terra violenta. Ali, acaba por entrar em confronto com Gilly, o filho mimado do xerife (defendido por um quase comovente John Travolta). À medida que a tensão aumenta, um ato de extrema violência conduz à inevitável vingança do protagonista, num desfecho a fazer lembrar O Comboio Apitou Três Vezes, de Fred Zinnemann.

A realização de Ti West é competente, nunca se sobrepondo à história que serve. É certo que Terra Violenta não vai fazer história, mas também não é esse o seu propósito. 

Uma nota final para outro protagonista: o cão de Paul, que introduz na narrativa um delicado toque de comédia, baralhando géneros e conseguindo ainda o feito de, ao mitigar a violência, conferir à película o tom (aparente) de filme de família.


quarta-feira, 5 de julho de 2017

"A Ultrapassagem" - road movie à italiana

Em 1962, Dino Risi assinou aquele que se tornaria um dos símbolos maiores da época de ouro do cinema italiano. Em boa verdade, A Ultrapassagem foi o filme que impôs Risi como um dos realizadores europeus mais bem sucedidos comercialmente.

Trata-se de um road movie sobre um quarentão que, com a sua personalidade exuberante, despreocupada e eufórica, arrasta consigo (e fascina) um tímido estudante de Direito. Todavia, o jovem demora a aperceber-se que o seu compagnon de route é apenas egocêntrico, superficial (hilariante o gag sobre o cinema de Antonioni) e desenraizado.

As interpretações de Jean-Louis Trintignant (perfeito na pele do jovem em contra-relógio para um destino (in)evitavelmente trágico) e, sobretudo, de Vittorio Gassman (em pose hiperativa, uma interpretação que só tem paralelo no Jack Nicholson de Voando Sobre um Ninho de Cucos) são paradigmáticas. Mas o elemento-chave deste clássico é, precisamente, a realização segura e ousada de Dino Risi, que imprime um ritmo frenético e vertiginoso a esta obra-prima made in Itália.


terça-feira, 4 de julho de 2017

"O Velho e o Gato" - uma história de amor felino vivida por Nils Udderberg

Da Primavera sueca chega-nos um livro escrito com uma simplicidade desarmante por um psiquiatra e intelectual prestigiado.

Em O Velho e o Gato, Nils Uddergerg, antigo professor universitário na área da Psiquiatria, conta como, numa fria manhã de Inverno, se tornou dono de uma gata, embora nunca tenha desejado qualquer espécie de animal doméstico. Ao longo da obra, o autor vai narrando a forma como o pequeno felino se introduziu, suave mas firmemente, na sua vida. Nessa leve e permanente intromissão, o autor encontra a oportunidade para especular acerca da vida interior do gato, bem como refletir sobre a natureza da relação entre um animal e um ser humano.

Longe de ser uma obra literária incontornável (nem sequer aspira alcançar tal estatuto), O Velho e o Gato vale, sobretudo, enquanto ato de humildade intelectual ao não pretender ser mais do que aquilo que é: o registo afetivo de uma vinculação inesperada na terceira idade do seu autor.

domingo, 2 de julho de 2017

Para refletir

As pessoas perguntam qual é a diferença entre um líder e um chefe. O líder trabalha a descoberto, o chefe trabalha encapotado. O líder lidera, o chefe guia.
Franklin Roosevelt, 32º Presidente dos EUA
 

Breves notas sobre o cinema de Wong Kar Wai (6) - "Disponível Para Amar" (2000)

E, no ano da graça de 2000, Wong Kar Wai alcançou o zénite da sua (sétima) arte com a obra-prima Disponível Para Amar . É (mais) uma históri...