quinta-feira, 18 de maio de 2023

Breves notas sobre o cinema de Wong Kar Wai (6) - "Disponível Para Amar" (2000)

E, no ano da graça de 2000, Wong Kar Wai alcançou o zénite da sua (sétima) arte com a obra-prima Disponível Para Amar.

É (mais) uma história de amor platónico, que, neste caso, decorre na década de 60 em Hong Kong, narrando a relação de amizade e amor entre um jornalista (uma vez mais, Tony Leung, justamente premiado com a Palma de Ouro para Melhor Ator no Festival de Cannes) e uma secretária (interpretada pela lindíssima e etérea Maggie Cheung). O facto de serem casados (embora infelizes) e as amarras das convenções sociais, leva-os a nunca concretizarem o desejo que sentem e a genuína atração que os aproxima.

Trata-se de um filme belíssimo, deslumbrante de cor e planos-sequência de cortar a respiração. E aquele final, meu Deus! É a mais sublime poesia de amor transfigurada em filme e um dos melhores de sempre, o que não é pouco.

quarta-feira, 17 de maio de 2023

Breves notas sobre o cinema de Wong Kar Wai (5) - "Felizes Juntos" (1997)

História de amor entre dois homens, mas que Wong Kar Wai filma livre de qualquer preocupação panfletária ou ideológica, como se se tratasse da mais banal paixão de amor heterossexual. É uma história de amor, ponto.

Com Felizes Juntos, Wong Kar Wai saiu, pela primeira vez, do seu território geográfico, colocando grande parte da ação na Argentina. No entanto, desenganem-se aqueles que julgam que essa mudança acarretou igualmente uma transformação estética no seu modo de olhar os espaços (interiores e exteriores). Antes pelo contrário, Felizes Juntos desenvolve e apura o estilo de construção fílmica que o realizador de Hong Kong irá, definitivamente, materializar na obra seguinte (Disponível Para Amar).

A título de exemplo, veja-se a forma como Wong Kar Wai filma as cataratas de Iguaçu: com a mesma asfixia e similar sensação de vertigem com que, nas películas anteriores, captava o elã da grande cidade. E, depois, há o espetáculo da entrega total de dois atores extraordinários: Tony Leung e Leslie Cheung.

terça-feira, 16 de maio de 2023

Breves notas sobre o cinema de Wong Kar Wai (4) - "Anjos Caídos" (1995)


Anjos Caídos podia bem ser uma sequela de Chungking Express. Entenda-se: como deixei explícito na recensão anterior, Chungking Express está muito bem assim. Todavia, também se persegue em Anjos Caídos uma estrutura díptica, embora, neste caso, as duas histórias decorram em simultâneo. Em boa verdade, o guião deste filme fazia parte da obra realizada em 1994.

São dois contos desencantados de amor platónico: duas histórias de (des)encontros, por vezes trágicos, à semelhança das duas primeiras obras de Wong Kar Wai, que aqui desenvolve a sua estética única (câmara sôfrega, ritmo frenético, humor agridoce, jukeboxes a acentuar os estados de alma dos protagonistas, a passagem do tempo assinalada em relógios públicos, a urbe claustrofóbica, a prevalência da noite na vida dos personagens).

As cenas em que uma das personagens deambula de mota, à noite, pela cidade são antológicas. E aquele final, embalado pela canção Only You, dos Flying Pickets, é inesquecível.

segunda-feira, 15 de maio de 2023

Breves notas sobre o cinema de Wong Kar Wai (3) - "Chungking Express" (1994)


Em 1994, após o desgaste provocado pela atribulada produção do épico de artes marciais As Cinzas do Tempo, Wong Kar Wai assina a sua primeira obra-prima: Chungking Express. Neste filme, o cineasta de Hong Kong apura a escrita e o sentido estético conduzindo-nos por duas histórias de dois polícias que, em momentos diferentes, frequentam o mesmo snack-bar e desabafam desgostos amorosos com o proprietário do estabelecimento. São duas pequenas histórias de amor que, na sua aparente simplicidade, se nos afiguram hoje como um retrato urbano-depressivo da última década do século XX.

Passa-se quase tudo em cenários noturnos e a um ritmo feérico e vertiginoso, embora a segunda história seja mais luminosa e divertida do que a primeira (mais negra e pessimista). Trata-se de um jogo de luz e sombras (não necessariamente por esta ordem) que revela um amor incondicional pelas personagens, mesmo quando elas caminham, de modo ambíguo, entre o bem e o mal. Mas o amor maior de Wong Kar Wai é, em boa verdade, o cinema na sua procura permanente em fazer algo de novo da sétima arte, seja na escolha do melhor enquadramento, seja na precisão do trabalho de montagem.

Como é que um filme pode ser, ao mesmo tempo, tão claustrofóbico e tão (desesperadamente) romântico? Chungking Express mostra-nos essa possibilidade. Que fique claro, sobretudo para quem contactar com esta obra magnífica pela primeira vez: o que se passou aqui foi uma autêntica revolução estética, uma nova nouvelle vague, desta vez em Hong Kong e com um nome que viria a tornar-se incontornável: Wong Kar Wai. Um artista enorme!

domingo, 14 de maio de 2023

Breves notas sobre o cinema de Wong Kar Wai (2) - "Dias Selvagens" (1990)

Hong Kong, 1960. Um homem entra num café, compra uma bebida fresca e propõe à empregada tornarem-se “amigos de um minuto”. Ela acaba por se apaixonar perdidamente por ele; um amor não correspondido porque aquele homem, além de se envolver com outra mulher, decide partir para as Filipinas a fim de conhecer a sua mãe biológica.

Esta história cruza-se com outra: a de um polícia que sonha ser marinheiro. Mas, como sempre, o cinema de Wong Kar Wai vale pelo todo, pelo que o espectador deve disponibilizar-se para entrar nos seus filmes como se desembocasse numa outra realidade: a das histórias que só ganham beleza sob o olhar do cineasta de Hong Kong.

Dias Selvagens é uma obra mais difícil do que a anterior (Ao Sabor da Ambição), mas também mais minuciosa e precisa, preparando o caminho para o rigor formal de Disponível Para Amar. Os movimentos de câmara são sempre surpreendentes e necessários para o pathos narrativo; os planos fixos são, só por si, obras de arte. Um filme que arrisca permanentemente, mas que constitui um salto em frente no amadurecimento do cinema de Wong Kar Wai.

sábado, 13 de maio de 2023

Breves notas sobre o cinema de Wong Kar Wai (1) - "Ao Sabor da Ambição" (1988)

No plano de abertura de Ao Sabor da Ambição (no original, As Tears Go By), primeira obra de Wong Kar Wai, vemos, no lado esquerdo, uma cidade, à noite, iluminada artificialmente (os néons que se revelarão tão característicos do cinema urbano do realizador de Hong Kong) e o trânsito quase claustrofóbico, e, no lado direito, um conjunto geométrico de ecrãs de televisão que mostram um céu carregado de nuvens. Num só plano, nos primeiros segundos, estão lançados os traços modelares dos filmes de Wong Kar Wai: a precisão matemática de uma estética que não é mero adorno, mas antes complemento emocional de histórias de amor febril em paisagens urbanas asfixiantes.

Logo no seu primeiro opus (sim, a música ocupa um lugar central na filmografia deste cineasta), Kar Wai mostra vontade em fazer um cinema simultaneamente cerebral e instintivo, delirantemente romântico e arrebatadamente trágico, revelando uma paixão pela composição de imagens e pelo poder sedutor do cinema.

Convém também notar que Ao Sabor da Ambição não deixa de ser um filme ingénuo na crença de que o espectador se deixará levar por esta variação de Os Cavaleiros do Asfalto, de Martin Scorsese, tal como o autor do argumento (o próprio Wong Kar Wai), mas, embora ainda não esteja à altura de obras posteriores, como Chungking Express, é, ainda assim, tão encantador hoje como em 1988.

quinta-feira, 11 de maio de 2023

Um livro para a Primavera (2) - "A Tirania do Mérito", de Michael J. Sandel


Numa altura em que tantos, nos meios de comunicação social, nas escolas e universidades, e até a maioria dos governantes (tanto à esquerda como à direita), exaltam as vantagens e virtudes da meritocracia, Michael J. Sandel convida-nos a pensar seriamente sobre se deve ser esse o caminho a seguir no contexto das democracias modernas. 
Em A Tirania do Mérito, Sandel advoga outra forma de pensar o sucesso, mais atenta ao papel da sorte, mais de acordo com a ética da humildade e preocupada com o bem comum. Como ponto de partida, o filósofo norte-americano desconstrói e confronta alguns dos discursos políticos e filosóficos de referência dos últimos cem anos, mostrando como a insistência na justeza da meritocracia conduziu as democracias ocidentais, já em pleno século XXI, para o ressurgimento de partidos populistas, que mais não são do que a resposta à arrogância dos discursos liberais e libertistas que criaram a ilusão de que, uma vez garantida a igualdade de oportunidades (como se tal fosse possível!), qualquer indivíduo pode ascender socialmente, e fomentaram a crescente vaga de ressentimento em todos aqueles (sobretudo, os mais pobres) que foram deixados para trás pela globalização e pela ditadura dos mercados. Temos, portanto, que repensar o bem comum e o valor social do trabalho.
Uma leitura que classificaria como "obrigatória".

quarta-feira, 10 de maio de 2023

Um livro para a Primavera - "O Meu Irmão Serge", de Yasmina Reza


A Quetzal tem-nos oferecido o privilégio de ter fácil acesso à obra literária da dramaturga e atriz francesa Yasmina Reza. A leitura de Felizes os Felizes, já há alguns anos, deixou-me a memória de algumas horas comoventes (no seu realismo tão próximo das vivências do leitor) e bem divertidas (no seu humor tão direto quanto subtil).

O Meu Irmão Serge é a obra mais recente de Yasmina Reza publicada em Portugal. O livro acompanha a relação entre três irmãos oriundos de uma família judaica - os Poppers -, todos já na meia-idade, que, por influência da jovem filha de um deles, decidem visitar o campo de concentração de Auschwitz. Serge, personagem truculenta, impulsiva e incorrigível, é o irmão mais velho, mulherengo e hipocondríaco; Nana é a irmã do meio, outrora vista como a mais inteligente da família e, previsivelmente, destinada a um futuro glorioso, mas que acaba condicionada pelo casamento com um esquerdista espanhol, trabalhador precário e sem recursos financeiros; Jean, o irmão mais novo, é o narrador, aquele a quem os irmãos mais velhos nunca prestaram particular atenção, embora seja ele a cola que une e religa os irmãos.

Sempre com apontamentos humorísticos (até porque Reza lembra o leitor do facto de a vida ser demasiado breve para se levar demasiado a sério) - de resto, tal como acontece em Felizes os Felizes e Babilónia, obras precedentes de Yasmina Reza -, a história dos Poppers funciona como um espelho da condição humana: como lidamos com as relações familiares, o envelhecimento, a memória do passado (e até com a própria memória histórica) e a morte.

Para quem não conhece a autora, garanto que a descoberta vale bem a pena.

Breves notas sobre o cinema de Wong Kar Wai (6) - "Disponível Para Amar" (2000)

E, no ano da graça de 2000, Wong Kar Wai alcançou o zénite da sua (sétima) arte com a obra-prima Disponível Para Amar . É (mais) uma históri...