domingo, 22 de dezembro de 2013

Legendar o silêncio icónico (28) - mar de dezembro


A vaguear numa fria manhã de dezembro, percorro lugares antigos com olhares novos. Dezembro é o mês mais cruel. Nele, os sítios tornam-se não-lugares, matéria imaterial, matéria-mãe. Daí o Natal.

sábado, 21 de dezembro de 2013

Banda sonora para o Natal - John Fahey: "Christmas Soli"

Foi um dos guitarristas mais respeitados do mundo, músico erudito e recoletor do cancioneiro popular norte-americano; hoje, John Fahey (1939-2001) é um artista de culto que devemos recordar. O pretexto é a edição do álbum "Christmas Soli", recolha e reinterpretação - em guitarra clássica, naturalmente - de standards desta época festiva. Religioso e profano, mas sempre profundamente cristão, é banda sonora para um Natal sacro, quente, familiar, pacífico e reconfortante.


terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Banda sonora para o outono - Fish: "A Feast of Consequences"



Há artistas que decidem virar costas à fama quando a integridade artística e a criatividade se aproximam de um limbo. Fish é um desses casos. Corria o ano de 1988 e os Marillion encontravam-se no auge do sucesso comercial, tendo concluído uma digressão mundial impressionante que culminava uma carreira ascendente de (na altura) apenas seis anos. Os dois últimos álbuns foram, bem vistas as coisas, os discos que salvaram o rock progressivo: os míticos "Misplaced Childhood" e "Clutching at Straws". Eram obras pensadas, criadas, compostas e gravadas com cuidado e minúcia arquitetónicas. À frente dos Marillion, Fish era o cantor-poeta, o gigante carismático de voz gentil mas sofrida, que aquelas letras eram de homem vivido. Então, porquê abandonar o grupo nesse pico criativo? Porque sim, pronto. Porque há autores que preferem percorrer o seu próprio caminho mesmo que ele implique abnegação. Porque o solipsismo é coisa que nasce connosco e determina as escolhas que fazemos. Porque há homens que não foram talhados para a fama. Porque há artistas que perspetivam o reconhecimento das massas como uma ameaça à criatividade. Porque a divergência exige risco.

Pois bem, Fish acaba de editar "A Feast of Consequences", obra densa, profundamente poética, que mesmo nos momentos mais delicados não deixa de ser intensamente negra. Em entrevista recente a uma revista britância, o artista afirma que não há razões na vida para sermos otimistas, acrescentando que o seu ceticismo o mantém lúcido e irremediavelmente longe da alienação. Convém referir que o cantautor passou por um interregno editorial forçado, já que um tumor nas cordas vocais levaram-no a pensar que nunca mais poderia voltar a cantar. Em boa hora, Fish recuperou a saúde e foi desenvolvendo o conceito para um disco concetual a partir de uma pesquisa detalhada sobre a experiência dos seus avós como soldados nas trincheiras durante a 1ª Guerra Mundial. O resultado é um álbum espantoso, que vai conquistando os ouvidos a cada nova audição. Claro que não é peça para qualquer ouvido. É, antes de mais, preciso perceber que o rock também pode ser música erudita com voz, guitarra, baixo e bateria. Ouça-se, por exemplo, as suites "High Wood" e "Perfume River", ou as canções (belíssimas!) "The Other Side of Me", "Blind to the Beautiful" e "The Great Unravelling".

Sem dúvida, um dos melhores discos do ano.


sábado, 30 de novembro de 2013

O eterno retorno

Américo Amorim parece querer dizer: "A minha fortuna ainda é só deste tamanho!"
A notícia de que a fortuna do senhor Américo Amorim duplicou "em apenas um ano, com a subida de flecha do preço das ações que detém na Galp Energia, no Banco Popular e na Corticeira Amorim" faz-me invocar outras tantas notícias que dão conta que, no mesmo período de tempo, aumentaram o número de sem-abrigo, foram cortadas as pensões e os salários de milhões de portugueses e que as desigualdades económicas e sociais se extremaram em Portugal. Ora, se a fortuna de alguns aumenta pelo efeito benéfico dos mercados financeiros, que sentido faz que a desgraça de muitos outros aumente também pela ação dos mesmos mercados (que exigem cortes e sacrifícios para continuarem a financiar o Estado)? Que forças permitem que as mesmas bolsas sirvam para enriquecer alguns, enquanto prejudicam a vida de tantos outros? E como conseguir estar no lado certo dos mercados: aquele que enriquece e não aquele que destrói as nossas vidas? Se os mercados financeiros têm de existir (dizem que servem para distribuir de forma eficiente os recursos entre quem poupa e quem precisa de capital), não o poderão fazer de forma equilibrada, evitando a consequência perversa de estarem a construir um mundo preenchido apenas por milionários e pobres? 

Estamos no século XXI, mas não muito diferentes das sociedades esclavagistas de há uns milénios, quando uma corte de poderosos era servida por uma legião de escravos, que apenas podiam optar entre a servidão e a indigência. Está na hora de pensarmos nisto.

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Banda sonora para o outono: Blackfield - "IV"

Só a distração e o mau gosto da imprensa especializada em música pode justificar passar ao lado de um dos grandes discos deste outono. Trata-se do projeto Balckfield e do álbum "IV", autêntico tratado de perfecionismo pop-rock assinado por músicos oriundos da área do rock sinfónico e progressivo (o israelita Aviv Geffen e o mestre do prog introspetivo Steven Wilson). Juntamente com os novos LPs de Fish, John Lees' Barclay James Harvest e Dream Theater são, talvez, os melhores discos deste outono.


domingo, 3 de novembro de 2013

Estado da Nação - A crise e o alto clero

Durante anos, o bispo do Porto, atual "rei" do clero português, estava contra os ataques perpetrados pelo governo. Agora que está na cadeira de sonho e perto do poder terreno, vem dizer que os portugueses "têm de ser mais modestos nos gastos".
A viagem para a capital do reino do gamanço fez-lhe mal e esquece-se que, para além de fazer parte de uma instituição secular ligada a atos menos próprios como a pedofilia, lavagem de dinheiro, entre outros, deveria dar o primeiro exemplo de sacrifício, abdicando das suas regalias enquanto eclesiástico. 
Já agora, e como o governo se diz democrata cristão, poderia dizer a este mesmo governo PSD/CDS, que seja mais contido nas despesas e não gaste dinheiro em submarinos, acabar com as PPP, as rendas das elétricas, não andem de carro mas sim a pé e não roubem os restantes cristãos. Sim, porque todos nós somos filhos de Deus. 

Amém.
Por André Nuno Rodrigues de Sousa

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Estado da Nação (a análise política de um amigo) - Portas apresenta o Guião da Reforma do Estado que só o próximo governo pode executar

O vice-primeiro-ministro, Paulo Portas, apresentou na quarta-feira o "guião para a reforma do Estado", uma espécie de documento que garante ter sido elaborado com "humildade democrática" que ninguém sabe bem o que será, quando o próprio, nem os restantes membros do governo, não a tem? e cujo horizonte classifica como sendo "de médio prazo", o que é mau sinal pois estou esperançado que este governo desapareça a curto prazo.
Em bom português, a montanha pariu um rato e o que está no guião do estado não é mais do que um programa, feito aos pontapés e que muitas das medidas, para não dizer todas, não são exequíveis. Antes de mais, e destacando a "recuperação de uma parcela importante da soberania nacional", que a meu ver nunca a perdemos, pois não esqueçamos que Portugal contribui tal como outros tantos países para o FMI e outras instituições, para que em momentos de instabilidade financeira possam ser ajudados.

Posteriormente Paulo Portas começou por afirmar que várias das reformas propostas "transcendem o prazo de uma legislatura", ou seja, continuam a governar pensando na rotatividade partidária e na expetativa de que o próximo governo socialista vá executar o que estes abutres estão a aplicar. Este último aspeto é deveras Maquiavélico pois, como já referi anteriormente, gostava que o governo desaparecesse a curto prazo e não existissem mais cortes, na medida em que, apesar de ser um leigo em economia, pensei que o próximo corte seria nos pulsos e de preferência com um x-ato e isto porque, inicialmente, foi o corte nos salários, depois o corte nas prestações sociais, a seguir o corte nas reformas, mais tarde o corte nas pensões de sobrevivência. Como tal, pensei que agora o governo ia obrigar os portugueses a cortarem os pulsos. Mas não, afinal vai cortar novamente nos salários e nas pensões. Isto revela falta de imaginação, sabendo nós que é sempre possível cortar mais nas PPP, rendas das elétricas, aumentar impostos sobre a banca e grandes fortunas, acabar com as reformas milionárias e as subvenções vitalícias dos políticos que ainda as recebem, entre outros.
Cada vez mais o Governo está parecido com o Estripador e não há ninguém que os apanhe, tal como o Estripador de Lisboa.

Paulo Portas apresentou assim, as principais propostas para a reforma do Estado a ser executado pelo próximo governo, que são[1]:

- Nomeação, no início do ano de uma comissão de reforma do IRS e redução deste imposto em 2015, bela medida pré eleitoral para que o povo vote neles. Neste ano de 2015 a crise já terminou e Portugal tem mais poder económico que a Alemanha pela certa.
-  A inclusão da chamada "regra de ouro" na Constituição, o que, alega Paulo Portas, daria "confiança" às instituições e aos mercados. Como é evidente, daria confiança às instituições e aos mercados, mas o Estado Social irá desaparecer, pois sabemos perfeitamente que num país com Estado Social as pessoas recorrem a ele com frequência. A tendência é para americanizar Portugal.
-  "Não podemos continuar com o mesmo número de funcionários como antigamente e não podemos continuar a fazer desvalorização salarial na função pública", defendeu o vice-primeiro-ministro ao anunciar a proposta de uma administração pública com "menos funcionários, mas que seja possível pagar-lhes melhor". No entanto, continuamos sem saber quantos funcionários públicos existem, quantos estão a trabalhar, que funções executam e se em determinados setores da função pública faltam funcionários.
- Trabalho a tempo parcial na administração pública. Vamos ter tarefeiros a trabalhar em períodos sazonais. Imagino a Marinha a funcionar só na época de Verão para vigiar as praias. 
 - Renovação da administração pública com o reforço da contratação de jovens licenciados. Ou se quisermos as cunhas para os “jobs for the boys” dos partidos.
- "Plafonamento" das contribuições dos futuros pensionistas e um teto máximo para as reformas do Estado. E em relação aos que já contribuem para a Segurança Social não irá haver um plafonamento? É que, se vier a existir, era bom que começassem a fazer as minhas contas.
 - Promoção de formas que permitam a agregação de municípios. Para quem pretende descentralizar, mais não está a fazer do que centralizar. Certamente, irão ter o número de câmaras que estes dois partidos, por norma, conseguem obter e as restantes desaparecem. PCP/Verdes/Bloco e Independentes que se cuidem.
- Avaliação do cheque ensino, que permita às famílias escolherem a escola que querem, um caso a ser estudado com casos-piloto. Estou mesmo a ver o filho do cigano bater à porta de um colégio, com vários cheques na mão mais parecendo as senhas do almoço.
- Criação de "escolas independentes", abrindo concursos que permitam aos professores tornarem-se proprietários e gestores de uma escola. As escolas nunca foram nem são verdadeiramente independentes, pois estão debaixo da tutela do Ministério da Educação. O que se pretende realmente é passar as escolas para a tutela das autarquias e aí, onde contínua a vigorar a corrupção, passará a ser mais fácil colocar nas escolas os filhos, os primos, os sobrinhos e os filhos das amantes dos Presidente de/da Câmara.
- Prioridade para a colocação de desempregados e criação de prémios para quem criar postos de trabalho. Não vejo os patrões criarem postos de trabalho sem terem a garantia de que uma boa porção de “carne” é dada pelo Estado e além disso vai ser mais fácil despedir, existindo assim mais precariedade laboral, com implicações diretas na economia e no crescimento demográfico do país.
- Redução do "Estado proprietário" (alienação de imóveis), a redução do Estado inquilino (poupança de rendas) e a racionalização de espaço dos serviços públicos (com levantamento dos espaços não utilizados). Em termos práticos: vender o nosso património.
- Criação, em 2014, de uma Comissão de Reforma da Segurança Social para elaborar uma proposta de reforma que assegure a sustentabilidade do sistema. Mais uma Comissão para levar uns quantos milhares de euros no fim de cada mês e no fim vão dizer que: Reforma? Nem morto!
- "Nem estatização nem Estado mínimo". O documento aprovado quer "abrir um debate nacional sobre o que devem ser as tarefas do Estado no século e no mundo em que vivemos”. O que ele pretende é pura e simplesmente não haver Estado, pois as principais obrigações do Estado para com o seu povo ficarão sem condições de ser executado. Em termos práticos, a iniciativa privada toma conta de todos nós. Basta pagar, claro.
- Justiça mais célere e melhor acesso efetivo. É só ver as condenações realizadas em Portugal relativamente ao BPN e BPP.

Desta forma, iremos ver nos próximos anos, a manter-se esta linha de pensamento neoliberal, o fim do Estado como nós o conhecemos. Querem americanizar-nos, mas esquecem-se que, como povo latino que somos, não temos a mesma cultura, os mesmos princípios, os mesmos costumes e desta forma estão a criar clivagens sociais graves, num país que está pobre e que não aguenta mais cortes. Deixo aqui uma ideia para quem governa. Porque não nos mandam tomar Depuralina? Depuralina “aspira” as gorduras ao longo do dia, durante a noite e também “aspira” as gorduras dos alimentos, evitando assim que as recuperemos. Ficamos mais magros, poupamos e certamente o país ficará mais rico.

Por André Nuno Rodrigues de Sousa

Quem quer comprar uma escola?


domingo, 27 de outubro de 2013

Estado da Nação - A pobreza, de acordo com o PP

Nos vários círculos da exclusão, os pobres de Paulo Portas ocupam os lugares mais profundos, secretamente irrevogáveis. Pertencem a um mundo que não muda, que Salazar interpretou superiormente e tentou confundir com a alma lusa. Este miserável perfeito só existe no subconsciente de Paulo Portas e nesse lugar é, curiosamente, o único elemento parado, voluntariamente desprovido, feliz com a sua miséria. Está num estádio inferior ao da resignação. A resignação pressupõe um incómodo, o desconforto de se imaginar uma outra realidade e, mesmo como possibilidade remota, a sua inclusão nela. A resignação tem em si, paradoxalmente e de forma ardilosa, a proto-ambição de mudança, porque é potencialmente provisória, precária, instável. Essa ousadia está completamente ausente da pobreza de Portas.

Os pobres de Portas são as vítimas da fome perpetuamente agradecidas à amabilidade enlatada da Dra. Isabel Jonet. Os pobres de Portas são o povoléu agrilhoado e agradecido, a arraia-miúda confundida com "a convergência do sistema de pensões", a gentalha aturdida com "o regime geral", o escorralho adormecido com "a condição de recurso", a ralé que "não aparece na televisão".

Mas nos círculos mais exteriores - e esta verdade fere a testa dos opressores como uma espada de fogo - há seres cada vez mais livres, alguns e algumas dos quais são tão livres como Paulo Portas.

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Estado da Nação - Ilusionismo retórico

Alguém morre e deixa uma pensão de 1000 euros. Desse montante, o cônjuge recebe 60%, ou seja, 600 euros. Um dia, um vice-primeiro-ministro e uma ministra das finanças anunciam que, dada a situação dramática do país, o sobrevivo passa a receber 54%. "Ou seja, estão a dizer-me que vou perder 6%, isto é, 60 euros", pensam os viúvos. Conformados, aceitam. Preparam-se para deixar de comprar o remédio para as varizes, cortam no pão, nas bolachas de água e sal e no café. Chega a pensão no mês seguinte e lá está a verba. Acham que está certa, mas, na verdade, não está. Foram iludidos. Isto porque a conta real é a seguinte: o novo montante da pensão, ou seja, 540 euros, é a base sobre a qual devem ser feitas as contas e significam, na realidade, um corte de 10% no rendimento disponível, que anteriormente era de 600 euros. Se calhar, é ilusionismo retórico. Baralha e volta a dar! A democracia é cara, mas quem disse que a trafulhice é a essência da democracia?

sábado, 19 de outubro de 2013

Banda sonora para o outono - Kenny Garrett: "Pushing The World Away"

Kenny Garrett é um dos nomes fortes do jazz contemporâneo. Tocou na orquestra de Duke Ellington e na banda de Miles Davis, tendo editado o seu primeiro LP em nome próprio em 1984. Desde então, tem construído a sua obra num tecnicismo crescente e em estéticas herdeiras de John Coltrane e Sonny Rollins. "Pushing The World Away", editado no início do outono, é um álbum que harmoniza o post bop e o jazz fusion mais espiritual com resultados impressionantes do ponto de vista da composição e da execução. 


sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Estado da Nação - Era uma vez um governo que se habituou a chamar idiota a um povo inteiro...

O Orçamento de Estado recentemente apresentado pela troika, perdão, pela atual Ministra das Finanças é um documento vergonhoso, que privilegia os grandes interesses - a banca e as elétricas - em detrimento dos pobres e remediados, que são todos os funcionários públicos com um salário de 600 euros ilíquidos. Um Orçamento que aumenta os gastos de funcionamento do próprio governo em níveis vergonhosos (os gabinetes vão gastar mais 3,3 milhões de euros que em 2012, época em que o primeiro-ministro anunciava que a austeridade começava dentro de portas), enquanto aniquila as pensões de reforma daqueles que nasceram noutros anos de chumbo e se esforçaram por nos entregar um país mais decente - e que agora sustentam os filhos desempregados por causa de uma política económica cega que trava o crescimento, a procura interna e a criação de emprego. O que está em curso é o desmantelamento do país tal como o conhecemos, a reboque de uma experimentação económica comandada por pessoas que não elegemos (embora boa parte do governo em funções se identifique com tal tentativa de implosão, na certeza, claro está, que do alto dos seus cargos - e futuros cargos em grandes empresas - nunca terão de se confrontar com as dificuldades do cidadão comum).
Já se sabia que o pretenso novo ciclo era um embuste retórico, uma vez que havia um compromisso prévio de corte de 4 mil milhões de euros. Afirmar, como os dois líderes dos partidos da coligação no poder, que isto "não é um novo pacote de austeridade", é chamar idiota a um povo inteiro.

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Banda sonora para o outono - Gregory Porter: "Liquid Spirit"

Há um disco que não sai da minha aparelhagem há já duas semanas: chama-se "Liquid Spirit" e traz a assinatura de Gregory Porter, talvez a mais profunda voz do jazz surgida no século XXI. Descobri este artista num concerto transmitido no canal Mezzo. Fiquei imediatamente hipnotizado pelo canto natural e pela simpatia de Porter. De grande porte, mas com pose elegante, o músico destaca-se pelo timbre e fraseado singular, por uma voz simultaneamente suave e poderosa, que evoca toda uma tradição de cantores norte-americanos de jazz e soul. 

Gregory Porter cresceu na Califórnia mas foi do lado Atlântico do continente americano que nasceu, verdadeiramente, para a música. Na verdade, foi já a viver em Brooklyn que lançou, em 2010, o seu disco de estreia, Water, seguido em 2012 pela obra-prima Be Good. Agora, aos 41 anos, assinou contrato com a editora Blue Note para a edição do terceiro álbum, o espiritual Liquid Spirit. Que não restem dúvidas: Liquid Spirit é mesmo um disco para polir a sensibilidade e elevar a alma. Quem não ouviu ainda Gregory Porter que o faça imediatamente, pois arrisca-se a passar ao lado do futuro do jazz e - mais importante ainda - poderá nunca vir a perceber por que razão a música também pode ser uma experiência religiosa.

Gregory Porter dará esta semana dois concertos em Portugal: dia 9 no CCB e dia 11 na Casa da Música. Que fizemos nós para merecer isto? 


sábado, 28 de setembro de 2013

Infâncias perdidas

De acordo com a Organização Internacional do Trabalho, são 168 milhões as crianças vítimas de trabalho infantil. Estima-se que 44% das vítimas tenham entre 5 e 11 anos. Futuros adultos com infâncias perdidas e almas destroçadas; 168 milhões de crianças sem direito a serem amadas.

sábado, 21 de setembro de 2013

"Se Gostaste da Escola, Vais Adorar o Trabalho" - sátiras honestas de Irvine Welsh

Irvine Welsh assina cinco extraordinárias histórias reunidas no livro Se Gostaste da Escola, Vais Adorar o Trabalho, afirmando-se como mestre da narrativa breve e como um dos escritores mais cómicos da cena literária contemporânea. 

Nesta recolha de histórias são colocadas ao leitor diversas questões de difícil, mas curiosa, resolução: Como é que três jovens americanos dão por si perdidos no deserto, dentro de uma tenda com dois mexicanos armados? Quem é o misterioso cozinheiro coreano que se muda para casa de Kendra Cross, uma socialite de Chicago? E o que é que ele tem a ver com o desaparecimento de Toto, o pequeno cão de Kendra? Como faz Mickey - o inglês dono de um bar nas Canárias - o malabarismo de manter a relação com a sua empregada, Cynthia, enquanto cuida da juvenil Persephone, uma turista grega, e dribla a sua persistente ex-mulher e uma parelha de gangsters espanhóis? Que sucessão de acontecimentos leva a que Raymon Wilson Buttler, cineasta falhado convertido em biógrafo de um lendário realizador americano, acabe como objeto de memorabilia do cinema? E porquê narrar o quotidiano de Jason, indolente habitante do Reino de Fife, na Escócia, recorrendo por inteiro ao calão local?

Nesta obra, Irvine Welsh desenha um coro de vozes rudes, cruas, discordantes, sujas, grotescas, por vezes surreais e extremamente cómicas.

domingo, 15 de setembro de 2013

Banda sonora para o verão: Lloyd Cole - "Standards"

Lloyd Cole regressa aos grandes discos com "Standards". Ao contrário do que o título poderia sugerir, o novo opus do músico nova-iorquino é constituído por onze canções originais inspiradas na renovada energia de Bob Dylan em "Tempest" (disco alvo de recensão crítica, há cerca de um ano atrás, neste blogue). Com a preciosa colaboração de Joan as Police Woman (piano metronómico), Fred Maher (bateria), Matthew Sweet (baixo), Blair Cowan (teclista dos Commotions) e do seu filho Will Cole (guitarra), o autor de "Rattlesnakes" gravou um sereno disco de rock, conseguindo momentos de elevação poética só comparáveis a Leonard Cohen, Lou Reed e, claro está, Bob Dylan. "Period Piece", "Myrtle and Rose", "No Truck" e "Kids Today" são canções da mais fina estampa a anunciar a iminência do outono.

Lloyd Cole - "Period Piece"

terça-feira, 10 de setembro de 2013

"Contos Sobrenaturais" - o prazer em ler Carlos Fuentes

Governada por uma ordem espiritual e poética que se sobrepõe à cadência cronológica, a existência humana nas terras pré-hispânicas regula-se desde há três mil anos pelo eterno presente do mito. Nos Contos Sobrenaturais do mexicano Carlos Fuentes (1928-2012), mais do que linguagem e efabulação, a morte e o mito são presenças tão reais que ganham carne e osso, transmutadas em sincretismos: dia e noite, chuva e seca, lua e sol, vida e morte.

Um destes impressionantes contos, narra a história trágica de Felipe Monteiro, historiador formado na Sorbonne, que, em resposta a um anúncio de jornal, aceita a completar as memórias inacabadas de um general falecido há sessenta anos. Para tal, Felipe viverá numa casa governada na penumbra, alimentado a rins, tomate e vinho, na companhia da velha viúva do general e da sobrinha, Aura. Louco de paixão e desejo por esta bela jovem, "fechada como um espelho", Felipe terminará como um Cristo negro, sacrificado no altar do tempo e do amor.

Datado de 1962, escrito na segunda pessoa do singular e na perpétua fusão entre os tempos presente e futuro, o conto "Aura" é por muitos considerado a mais notável criação de Fuentes e uma das mais emblemáticas da literatura latino-americana. A essência rural da alma mítica mexicana surge em Fuentes transfigurada em ambiente urbano, tão cosmopolita que se lê ao som do jazz (o conto "Pantera em Jazz") ou como novela de ficção científica ("O Robô Sacramentado"). Todos estes nove contos são da primeira fase da carreira do escritor, período marcado por narrativas breves e esteticamente delicadas. Um livro de leitura obrigatória para quem opta pela grande literatura.

domingo, 8 de setembro de 2013

No verão quente de 1963

Há 50 anos, no Lincoln Memorial, em Washington, Martin Luther King, líder do movimento de luta pelos direitos civis, proferiu o discurso que constituiu um marco histórico na luta pela igualdade racial. «I have a dream» - foi a sua célebre frase, repetida várias vezes ao longo do discurso, feito em tom profético e que marcou o movimento pela cidadania e respeito pela cultura da população negra nos Estados Unidos da América e a nível mundial. As ameaças de morte que recebia eram já nessa altura frequentes, tendo sido assassinado cinco anos depois. Convém, portanto, relembrar um discurso de paz em tempo de guerra iminente.




sábado, 24 de agosto de 2013

Banda sonora para o verão: Unitopia - "Covered Mirror Vol. 1"

Unitopia é uma banda australiana com uma carreira discreta, mas marcada por uma coerência estética impressionante. Há alguns meses editaram um disco de homenagem às bandas e aos artistas que os inspiraram na construção de álbuns concetuais próximos do neo-prog iniciado nos anos 80 por bandas como Marillion, Pendragon, It Bites e IQ. "Covered Mirror Vol. 1" (com o subtítulo "Smooth As Silk") é uma obra sublime na forma como os Unitopia transfiguram clássicos dos Yes, Genesis, Klaatu, Marillion, entre outros, e os tornam seus. Dito de outro modo: apesar da grandiosidade das canções originais, as versões do grupo australiano ganham vida própria, com pleno direito de coexistirem com as anteriores. Trata-se, portanto, de um LP obrigatório.

Unitopia - "Easter"

terça-feira, 20 de agosto de 2013

Ética e Política em Democracia (4)

Em 2005, inspirados pelo caso de perenidade surreal de Alberto João Jardim, os deputados do PS e do Bloco de Esquerda aproveitaram o momento e a correlação de forças políticas para mudar a lei então vigente que assegurava a permanência ilimitada no poder de autarcas e governantes regionais. Mas, como este é um campo em que as fronteiras entre esquerda e direita são extremamente voláteis, o PSD (assombrado pelo barão intocável que comanda os destinos da Madeira) tinha como aliado o PCP (um partido que compete com o regime comunista de Cuba na frequência com que muda de líder) na defesa dos monarcas camarários. Já o CDS e os Verdes abstiveram-se, o que permitiu a passagem da lei, embora reduzida à limitação dos mandatos autárquicos e mantendo uma ambiguidade semântica que permitia interpretações dúbias: a partir dessa altura, um presidente de uma câmara municipal não poderia manter-se à frente da autarquia ao fim de três mandatos; mas isso seria impeditivo de concorrer a outra(s) câmara(s) para um mandato idêntico, repetindo-se esta condição ad aeternum?

Com a aproximação das eleições autárquicas deste ano, a necessidade de clarificar a lei colocou-se de forma premente. Todavia, a triste verdade é que ninguém ousou no Parlamento uma nova iniciativa legislativa, responsabilizando os tribunais pela decisão final. Começou então a trapalhada da judicialização da política, com tribunais a decidirem em sentido contrário a partir de um mesmo texto legal, umas vezes autorizando que autarcas prestes a esgotar a limitação de mandatos num município pudessem concorrer a uma outra câmara, outras vezes interditando tais pretensões. Mas, para complicar ainda mais a saúde e clareza da nossa democracia, a sentença decisiva ficará sempre dependente do Tribunal Constitucional.

É altura de percebermos que esta perpetuação do poder autárquico congela as perspetivas de renovação do país. No poder local, repetem-se as mesmas cenas e as mesmas personagens, sem que delas se extraia uma lógica de necessidade. Assistimos a uma sórdida pantomina de ambições políticas medíocres, onde se pula de câmara em câmara como único objetivo de vida e se fecham as portas ao rejuvenescimento das instituições, reféns da rede de clientelismos que circulam de um concelho para outro ao ritmo da construção de rotundas. Será o nosso País uma feira de velharias sem préstimo?

domingo, 18 de agosto de 2013

"Elysium" - uma distopia atabalhoada de Neill Blomkamp

Acaba de estrear "Elysium", o novo filme de Neill Blomkamp, cineasta que há quatro anos surpreendeu o mundo com o muito interessante "Distrito 9". Todavia, a película assinada em 2013 é uma deceção a todos os níveis. 

"Elysium" tem uma premissa promissora: em 2159, milionários e políticos influentes vivem numa estação espacial - o Elysium que dá nome ao filme -, enquanto os pobres permanecem na Terra - planeta devastado pela sobrepopulação, dominado por favelas e com uma atmosfera quase irrespirável. Muitos sonham com a possibilidade de chegar àquele paraíso acima da miséria que se vive no planeta azul; alguns tentam lá entrar clandestinamente; mas Elysium é vigiado com mão de ferro pela déspota secretária de Estado Delacourt (Jodie Foster num dos muitos personagens caricaturais da fita), que tenta por todos os meios preservar a vida luxuosa dos privilegiados habitantes da estação orbital. Contudo, um operário (Matt Damon num esforço constante em dar espessura dramática ao seu personagem), vítima de exposição a radiações excessivas na fábrica onde trabalha, vai embarcar numa demanda em direção a Elysium na expectativa de encontrar uma cura para a sua doença. Pelo caminho, a empresa deste herói deixa de ser individual para defender uma causa maior: permitir o acesso do povo ao satélite celestial.

Blomkamp encarrega-se de retirar seriedade ao seu filme, despachando a narrativa em cerca de 100 minutos (e o mal não viria daí, é claro!), onde o pathos se dilui em personagens preguiçosas, estereotipadas, demasiado esquemáticas, que nunca se levam a sério num filme que claramente pede muito mais. Convém clarificar: o problema desta obra (?) não é a economia de narrativa, é antes a ausência de espessura dramática; é não definir com honestidade o seu propósito (começamos por pensar que assistimos a uma parábola de ficção científica e sai-nos um sucedâneo scy-fy de série B, com um argumento atabalhoado, com momentos de humor involuntário, que nem com os "clássicos" de Chuck Norris consegue rivalizar). Muitos dirão que se trata de um filme marxista (e podia ser!) sobre o presente (os pobres têm que se sujeitar a cuidados hospitalares limitados e deficientes; os ricos possuem em casa máquinas que garantem a cura de todas as enfermidades); outros relevarão uma visão distópica que resulta das desigualdades sociais bem acentuadas no momento presente (e esse ponto de vista está no filme); mas quantos e tão bons filmes foram fabricados com mensagens semelhantes (e aqui incluímos "Distrito 9")? E tanto dinheiro gasto para quê? O cenário é ainda mais trágico ao sabermos que Neill Blomkamp teve total liberdade criativa (coisa aparentemente rara nos estúdios de Hollywood).

"Elysium" não se salva nem enquanto filme de verão. Está até uns furos bem abaixo de "WWZ", de Marc Forster, outro filme falhado que marcará tristemente esta época estival. Por entre as ruínas desta tragédia cinematográfica, só mesmo a prestação de Matt Damon merece algum respeito (todos os outros atores passeiam-se à deriva sem bússola que dê clareza e dignidade às personagens que interpretam). Definitivamente, também Hollywood foi contagiada pela silly season.

terça-feira, 13 de agosto de 2013

Um livro para o verão: "Em Parte Incerta" - de Gillian Flynn

A literatura contemporânea assume contornos comerciais que, em nome da competitividade entre editoras e do combate à crise económica, levam a valorizar o embrulho - leia-se: o marketing - em detrimento do conteúdo. Este vai empobrecendo à medida que autores como Dan Brown e Nora Roberts dominam o mercado livreiro. No meio destes engodos surgem alguns livros e autores que facilmente são confundidos com produtos industriais e superficiais. Este pode ser o caso do romance "Em Parte Incerta", de Gillian Flynn, escritora norte-americana que, em boa verdade, é uma das maiores revelações da literatura do início do século XXI. 

Trata-se a referida obra de um thriller negro, densamente psicanalítico sobre os segredos e mentiras de um casal, que se torna profundamente perturbador por descobrirmos naquele marido e naquela mulher talvez o retrato cru e sem piedade do modelo familiar da classe média na civilização ocidental deste século. Começamos a leitura do romance por acreditar em Amy (a mulher) e terminamos a torcer por Nick por nos identificarmos com a sua frágil humanidade. 

Há, de algum modo, na novela de Lynn uma fria análise da emancipação feminina e das suas consequências na estabilidade da grupo familiar tradicional. Mas, sendo o autor uma mulher, não encontramos por aqui qualquer visão sociológica que se possa designar como machista. E isso torna o romance ainda mais interessante e intrigante.

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Ética e Política em Democracia (3)

Perguntar-se-á: como pode alguém com o currículo de Joaquim Pais Jorge chegar ao Governo? Tristemente, com a rotação há muito instituída do bloco central de interesses e clientelas, isto já nem sequer é uma novidade. No presente caso, resultará, sobretudo, do enlevo da ministra com as qualidades técnico-profissionais do ex-Secretário de Estado, esquecendo o necessário pré-requisito para a escolha de quem deve ocupar responsabilidades de governação de um país democrático: exigência ética. Deve, portanto, o político ser um cidadão exemplar? Sim, deve. Caso contrário, como podem os eleitores compreender, por exemplo, a necessidade de medidas de austeridade? 
O perfil tecnocrata e a notória falta de sensibilidade política de Maria Luís Albuquerque explicarão este lamentável episódio. Mas o que anda a fazer Passos Coelho? Deixa que tudo lhe passe ao lado?

domingo, 11 de agosto de 2013

Ética e Política em Democracia (2)

Há, pelo menos, três critérios que um candidato a governante deve preencher: competência técnica, conduta ética e coerência política. Joaquim Pais Jorge só satisfazia o primeiro! Não custa admitir que seja um perito nas engenharias financeiras e contabilísticas que andou a vender, em anos recentes, por vários estaminés. Mas não cumpria nem os mínimos éticos (ao dispor-se a dar a cara por uma causa e pelo seu contrário) nem a necessária coerência política (ao saltar do colo dos escroques Sócrates e Paulo Campos para o colo de Passos Coelho e Maria Luísa Albuquerque). São, por isso, inoportunas a arrogância e o topete de Joaquim Pais Jorge ao queixar-se publicamente da «baixeza» e do «lado podre da política» na hora da sua tardia partida.

sábado, 10 de agosto de 2013

Ética e Política em Democracia (1)

Mais grave do que a demissão de Joaquim Pais Jorge foi a sua nomeação para o Governo. Porque não pode valer tudo em política e, muito menos, na atividade política exercida em nome do Estado. Um governante não pode passar de um lado para o outro das barricadas como se tudo fosse possível e admissível. Não pode ter andado a vender swaps ao Governo anterior com o intuito de disfarçar o défice público e vigarizar as estatísticas do Eurostat para, no Governo seguinte, aparecer a renegociar os estragos causados pelos swaps. Não pode ter sido colocado na Estradas de Portugal por um famigerado vulto do socratismo, Paulo Campos, e aí se tornar responsável por alguns dos contratos ruinosos para o Estado de PPP rodoviárias para, na encarnação posterior, entrar no Governo que fez da denúncia das PPP uma das suas bandeiras distintivas. 

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Banda sonora para o verão: "Electric" - Pet Shop Boys regressam à pop solarenga

Em matéria sonora, a subtileza nem sempre foi apanágio da pop dirigida às pistas de dança. Neste contexto, todavia, os Pet Shop Boys sempre primaram pela procura de formas musicais que transfigurassem estéticas, de alguma forma, clássicas. Depois de um disco outonal, "Elysium", lançado nos últimos meses de 2012, editaram aquele que figurará como um dos melhores LPs deste verão, "Electric". Ao contrário do álbum anterior, de pendor intimista e introspetivo, trata-se de uma obra assumidamente hedonista e despretensiosa, orientada para as pistas de dança (como já haviam sido "Disco" e "Introspective", dois registos incontornáveis da década de 80) mas com o toque clássico singular da dupla britânica. "Thursday" e "Vocal", os dois temas que encerram "Electric", são duas canções pop (quase) perfeitas.

Pet Shop Boys - "Thursday"

terça-feira, 30 de julho de 2013

"Dentro de Casa" - Mayorga por Ozon

Germain (Fabrice Luchini em estado de graça) é um professor de francês dedicado mas pretensioso. Escritor falhado, tem sempre a cultura no bolso e uma frase feita na boca. Diz ele que se sente preparado e motivado para mais um ano letivo porque passou o verão a ler Schopenhauher. A mulher, Jeanne (Kristin Scott Thomas definitivamente instalada no cinema francês), galerista de arte contemporânea (que o marido detesta), aconchega-lhe a frustração rotineira dos dias passados a corrigir testes de alunos sem interesse. Só que um deles, Claude Garcia (Ernst Umhauer num registo suavemente perverso), começa a surpreendê-lo. As redações deste aluno têm um surpreendente valor literário para um rapaz de 16 anos. O professor vai criando uma relação cada vez mais próxima com Claude, incentiva-o a continuar a escrever e começa a ansiar pelo que regularmente sai da pena do jovem: este aluno brilhante não só descreve com ironia fina os clichés de uma família pequeno-burguesa, a de Rapha, seu colega de turma, como deixa no ar uma perversa e proibida paixão pela mãe deste último, Esther (uma belíssima Emmanuelle Seigner), que está para a narrativa como o sal para a comida. Todavia, o texto, aparentemente ficcionado, está perigosamente ligado à realidade, como se o que se escreve fosse anúncio do que está para acontecer.

O pai e filho, ambos de nome Rapha, são declaradamente broncos; Esther é uma dona de casa naïf; mas é pelos olhos do casal Germain, levados pelo silêncio insolente de Claude, que François Ozon põe em prática a sua crítica de costumes mordaz, fazendo-nos entrar num jogo algo thrillesco: aquilo que se passa é a realidade, ou antes o motor de uma ficção que os voyeurs Germain desejam? Preso entre a estética de Woody Allen e a inspiração flaubertiana (não é de modo fortuito que o liceu onde grande parte da ação do filme se situa se chame, precisamente, Flaubert), confortado pelo seu final redondo (diferente do final da peça que Ozon adapta, "O Rapaz da Última Fila" do dramaturgo espanhol Juan Mayorga) e pela paródia intelectual francesa (são inúmeras as referências literárias que, ironicamente, pontuam a ação), "Dentro de Casa" parece responder a um dos seus diálogos: "A arte, em geral, não nos ensina nada e ainda bem." 

Mas, acima de tudo, a película em análise testemunha uma paixão lúdica pelo fait divers, um savoir faire e uma mecânica de fabricação, assente numa matriz popular, que François Ozon consegue sempre imprimir nas suas obras.

Trailer de "Dentro de Casa" - de François Ozon

segunda-feira, 15 de julho de 2013

Banda sonora para o verão: Sound of Contact - "Dimensionaut"

Simon Collins, filho do célebre baterista e compositor Phil Collins, parece fazer jus ao ditado popular que postula que "filho de peixe sabe nadar". Com a sua emergente banda de prog rock, Sound of Contact, acaba de lançar o primeiro opus de uma carreira que se prevê fulgurante. O disco chama-se "Dimensionaut" e é de uma energia e criatividade rock à altura dos saudosos Genesis de "Abacab" e "Invisible Touch". O álbum é tremendo, viciante, obrigatório. Melhor só talvez "Genesis Revisisted II" do subvalorizado Steve Hackett, ou "English Electric" dos Big Big Train (já analisado neste blogue). Mas o ano ainda vai só a meio.

Sound of Contact - "Closer to You"

quarta-feira, 3 de julho de 2013

E agora?

A profunda crise em que o país está imerso, exige ação imediata. Na verdade, não é possível esperar mais tempo para dar, interna ou externamente, um sinal de que não se perdeu absolutamente o norte e de que o poder não caiu na rua. É o momento de demonstrar, por ações e não apenas por palavras, que Portugal está primeiro e que o futuro dos portugueses deve ser a prioridade da classe política.

Com o Governo a desmoronar-se, cabe ao Presidente da República a iniciativa urgente de acionar as saídas constitucionais adequadas e assumir o papel de garante da esperança possível. E a todos os partidos cabe o imperativo categórico de colaborar responsável e ativamente.

A maturidade e a capacidade de sacrifício que os portugueses têm demonstrado não merecem outra coisa que não seja a reflexão serena e a decisão concertada da classe política - verdadeiramente devedora do povo, a quem prometeu servir. Os portugueses têm o direito de não esperar menos que isto. Afinal não foi por culpa da sufocada e quase extinta classe média que a crise entrou e o risco gravíssimo de um segundo resgate ameaça a sua vida. A vida de tantas famílias.

segunda-feira, 1 de julho de 2013

Imagens para uma noite de verão: "Tabu" - de Miguel Gomes

Uma idosa temperamental, a sua empregada cabo-verdiana e uma vizinha dedicada a causas sociais partilham o andar num prédio em Lisboa. Quando a primeira morre, as outras duas passam a conhecer um episódio do seu passado: uma história de amor e crime passada em África, nos tempos do colonialismo.

Exposta deste modo, a sinopse de "Tabu" não ilustra a qualidade da obra de amor à sétima arte assinada por Miguel Gomes. À semelhança do disco sob escrutínio no post anterior, "Tabu" exige ser experienciado. Não se pede o mesmo que muitos críticos em relação a boa parte da cinematografia cá do burgo, isto é, a película de Miguel Gomes não implica uma predisposição especial (leia-se: paciência) por parte do público. Antes pelo contrário, "Tabu" é uma fita que se dá espontaneamente ao espetador, independentemente da sua cinefilia ou resistência a uma certa estética visual. 

Dividido em duas partes - manifestando, talvez, um desejo de classicismo -, "Paraíso Perdido" e "Paraíso", respetivamente, "Tabu" é uma fita que parece saída de outro tempo, talvez de um tempo que transcende cânones cinematográficos, apesar da vontade do autor em aproximar-se de forma quase explícita do melodrama. Com a sua terceira longa-metragem, Miguel Gomes desenhou um filme poético, uma obra inclassificável (e isto é um elogio), arriscada, contra a corrente e à altura de objetos incontornáveis como "Tempos Difíceis" de João Botelho, e "O Sangue" de Pedro Costa.

Trailer de "Tabu"

domingo, 30 de junho de 2013

Banda sonora para o verão: Big Big Train - "English Electric Part One & Part Two"

Big Big Train é uma banda com vinte anos de história registada numa obra discográfica monumental, marcada por canções épicas e orquestrações grandiloquentes. Em boa verdade, não há palavras que racionalizem, sobretudo a quem nunca teve o privilégio de deleitar os seus ouvidos com a música inspiracional daquela banda britânica, as texturas e harmonias, o fulgor melancólico, a nostalgia e as histórias que levitam etéreas na arte dos Big Big Train. Estamos, portanto, diante de um monumento sonoro praticamente desconhecido em terras lusas, mas - garanto - trata-se de um autêntico fenómeno de culto que tem merecido textos profundamente emotivos em boa parte da imprensa anlgo-saxónica.

O mais recente opus dos Big Big Train é "English Electric", disco dividido em duas partes gravadas nas mesmas sessões, mas editadas em alturas diferentes: a primeira em setembro de 2012 e a segunda em março de 2013. Vale bem a pena comprar os dois discos - estão a bom preço na amazon. Ouvi-los é entrar num universo sonoro incomparável com qualquer outro registo; é penetrar em poemas (en)cantados que narram histórias de comboios a vapor em viagem pela Inglaterra rural do início do século XX; é sentir o odor da fuligem saída das minas de carvão; é testemunhar o fim de um tempo, de um modo de vida e de uma certa paisagem; é perscrutar o perene no efémero; é procurar no verão sinais do outono.

Big Big Train - "Curator of Butterflies"



terça-feira, 18 de junho de 2013

"Parto" - os espaços da morte

"Parto", filme de António Borges Correia, bem que se podia chamar "Requiem pelo cinema português". Na verdade, se a película - belíssima, afirme-se desde já - reflete acerca do fim do culto da morte num mundo globalizado, pode ser lido também como metáfora para o lento definhar do cinema português. Digo lento, na medida em que a crise na sétima arte produzida em solo nacional já se arrasta há mais de duas décadas, tendo os três últimos governos desferido os golpes mortais a um cinema em agonia e, não fosse um ou outro foco de resistência individual (de que "Parto" é um ilustre exemplo), já se consideraria moribundo.

A estrutura narrativa de "Parto" é simples: um agente funerário precisa de ir buscar o corpo de um homem a um lugarejo escondido num vale da Serra da Peneda. Com a colaboração de dois amigos, monta a urna numa pick-up (uma vez que não há outra forma de chegar ao destino) e seguem serra acima. Pelo caminho, cruzam-se com personagens pitorescas, gente com histórias de emigração forçada mas que acabaram por regressar à terra onde nasceram. Trata-se, portanto, de um filme telúrico, mais próximo do cinema de John Ford que do de Manoel de Oliveira, expondo breves apontamentos sobre o ritual da morte em tempos passados e acentuando o pendor metafísico da obra ao nos revelar a rotina, a mundividência e os últimos dias do homem que partiu.

"Parto" foi editado em DVD com o selo da zulfilmes.

quarta-feira, 12 de junho de 2013

Banda sonora para a Primavera (21)

Em 2007, Gazpacho, banda norueguesa responsável por parte da revitalização e prestígio reconquistados pelo formato inclassificável do art-rock (designação que funciona como variante do rock progressivo), gravaram o seminal "Night", obra concetual dividida em cinco partes mas que na verdade constituem um opus único. Obra noturna maior, trata-se da narrativa etérea de um sonho no momento do clímax onírico (aquele que Descartes descrevia no célebre "Discurso do Método" ao referir-se à confusão que resulta na mente do sujeito quando, de repente, ao despertar de um sono profundo não distingue com clareza a passagem para o estado de vigília - estarei ainda a dormir ou já estou acordado?). "Night" foi agora regravado e reeditado numa edição de luxo, acompanhada por um lindíssimo booklet da responsabilidade do artista plástico espanhol Antonio Seijas. A música contida no CD é de uma beleza hipnótica, tornando-se viciante (não sai da minha aparelhagem há mais de duas semanas). Ainda por cima, está a muito bom preço na Amazon.

Gazpacho - "Upside Down"


sábado, 18 de maio de 2013

Legendar o silêncio icónico (27) - a tragédia da exploração do homem pelo homem


Reshma Begum, 18 anos, foi salva ao fim de 17 dias sob os escombros do edifício Rana Plaza, onde trabalhava como costureira por 1 euro ao dia. O prédio ruiu no dia 24 de abril, em Savar, na periferia de Daca, capital do Bangladesh, e causou a morte a mais de 1.100 pessoas. O proprietário, Mohammed Sohel Rana, foi preso quando tentava fugir, acusado da má construção do edifício, onde funcionava a sua fábrica têxtil que trabalhava para a empresa irlandesa Primark. Quando já não havia esperança de encontrar sobreviventes (o último fora descoberto quatro dias depois da tragédia), as equipas de salvamento ouviram gritos sob o entulho: eram de Reshma. Esta jovem torna-se tristemente o rosto universal da perpetuação de novas formas de escravatura, aquelas que Marx sinalizava como exploração do homem pelo homem. E nós, continuamos cegos na febre do consumismo urbano a deliciarmo-nos com farrapos que, por serem baratos, compramos desafogadamente para pendurarmos no armário.

segunda-feira, 13 de maio de 2013

Banda sonora para a Primavera (20)

Da Polónia chega-nos um álbum apaixonante, com claras referências ao rock progressivo de uns Marillion ou Pendragon. Chamam-se Riverside e a obra concetual em tons sci-fy é "Shrine of New Generation Slaves". Pesadelo sombrio de um futuro possível, o disco regista oito temas contínuos, marcados por harmonias clássicas, mas acima de qualquer banda pop-rock mainstream. Basta ouvir "The Depth of Self-Delusion" para perceber do que estamos a falar. Absolutamente obrigatório na discoteca de qualquer melómano de bom gosto.

Riverside - "The Depth of Self-Delusion"



Breves notas sobre o cinema de Wong Kar Wai (6) - "Disponível Para Amar" (2000)

E, no ano da graça de 2000, Wong Kar Wai alcançou o zénite da sua (sétima) arte com a obra-prima Disponível Para Amar . É (mais) uma históri...