sábado, 26 de dezembro de 2015

"A Visita" - o regresso de um autor

Saúda-se o regresso de M. Night Shyamalan ao Cinema (assim mesmo, com C maiúsculo). A Visita é um clássico instantâneo: comédia de terror, o (in)esperado twist final impede A Visita de poder ser um filme para toda a família. Ainda bem, uma vez que a aparente simplicidade da narrativa e a ausência de efeitos especiais constituem marcas maiores de um autor que nos trouxe obras tão memoráveis quanto O Sexto Sentido, O Protegido, Sinais, A Vila e O Acontecimento.

Filmado com a estética found footage, A Visita supera todas as obras com esse formato. É que Shyamalan confere a alma que falta aos produtos de outros aspirantes a cineasta. A fita em análise tem personagens e verdadeiros atores (ainda que sem vedetas).

Dois irmãos adolescentes vão passar alguns dias com os avós que nunca conheceram. Apesar do carinho com que são recebidos, os netos ficam perplexos quando lhes é dito que não podem sair do quarto depois das 21h30. Decididos a desvendar a razão de tal interdição, descobrem que os avós não são os velhinhos encantadores que pareciam à primeira vista.

A história, além de apontamentos autobiográficos (a personagem de Rebecca, a irmã mais velha, é quase um alter ego de Shyamalan), mantém as referências spielbergianas (a ausência incompreendida da figura paterna) que já havíamos visto em O Sexto Sentido, e consolida a reputação de M. Night Shyamalan como esteta e autor maior.


quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

[Natividade]

nasce, Menino
agasalhado nos braços de tua Mãe
embalado em afetos
no calor luminoso da Estrela Polar.

nasce, Menino
faz-te ser de Amor
que tudo inclui
envoltório de Paz no Mundo.

nasce, Menino
que o estábulo se transforme em Lar
superfície plana do Pão
que alimenta a Humanidade.
Rui Louro Mendes

domingo, 20 de dezembro de 2015

Banda sonora para fim de outono - Jose James: "Yesterday I Had The Blues - The Music Of Billie Holiday"

Se os ouvidos do século XXI estivessem para aí virados, Jose James não seria apenas catalogado como músico de jazz (o que, em boa boa verdade, já não é pouco) - com muitos fãs conquistados numa carreira que ainda vai em meia dúzia de anos, convém salientar - e passaria a ter o estatuto de artista global, que bem merece, tanto pela substância das canções contidas nos seus três álbuns como pela diversidade estética de que se mostra capaz a cada novo disco.

No mais recente Yesterday I Had The Blues - The Music Of Billie Holiday, Jose James homenageia a diva da música negra norte-americana de forma simultaneamente reverente (o respeito pela melancolia das canções originais) e irreverente (as interpretações de James conferem novas formas ao espólio selecionado, levando o ouvinte a facilmente esquecer que estas canções foram celebrizadas pela voz de Billie Holiday).

Obrigatório! 

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Estado do Mundo (32) - 35 milhões de escravos

Apesar dos 150 anos da ratificação da abolição da escravatura nos Estados Unidos da América (foi em 1865) se terem assinalado no dia 6 de dezembro, a organização não-governamental Walk Free Foundation garante que em 2014 ainda existiam perto de 35,8 milhões de escravos no mundo (recorde-se que em 2013 eram 29 milhões).

Índia, China, Paquistão, Uzbequistão e Rússia são os países que concentram mais escravos (61% do total), mas o pior país em termos de prevalência da escravatura foi, tanto em 2013 como em 2014, a Mauritânia, com 4% da população em situação de escravidão, num total de 155.600 pessoas.

Aquecimento global, terrorismo, fanatismo religioso, crise económica global, escravatura... Serão estas as marcas do século XXI na História? No dia em que se comemora a Declaração Universal dos Direitos do Homem, urge refletir sobre o mundo e a humanidade que queremos legar às futuras gerações. Para nós, a solução reside na Educação, ou, como diria Clint Eastwood, em deixarmos filhos melhores para o nosso planeta.

http://www.walkfreefoundation.org/

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Bosquejos de ternura (4) - nova infância


O telefonema do avô a convidar filhos e netos para um almoço em família. Convite matinal. Compromisso inevitável.

13 horas. Leça da Palmeira. Porto de abrigo de afetos, sonhos, amizades, vivências, crescimento físico e interior. A mesa já posta. O reconfortante aroma da comida, quente essência odorífera que abre o apetite e faz esquecer o apressado pequeno-almoço tardio.  O cão minúsculo, mas sonoro, aos saltos, a tentar competir com os mais novos membros da família. Em vão.

Os dois sobrinhos são a nova infância da família. Irmãos. Irmã e irmão. Ela observadora, personalidade resguardada. Ele frenético, extrovertido - chegaste, se quiseres podes brincar; se não quiseres, também não importa! -, de carrinho na mão (objeto que passou de geração em geração: foi meu, do meu irmão, passou para o Tomás e agora para o Mateus), pontapé ocasional ao cachorro, logo aconchegado pela avó.

Com tardes assim, não há tristeza ou carência que não esmoreça. Só faltavas tu, amor!

domingo, 8 de novembro de 2015

"Vai Seguir-te" - homenagem aos clássicos de terror, por David Robert Mitchell

Um dos grandes filmes do Ano da Graça de 2015 vem sob a forma de filme de terror. Assinado por uma jovem promessa, David Robert Mitchell, cineasta com mão segura e olhar firme, Vai Seguir-te é uma película com escola por trás - saltam à memória obras de John Carpenter (a banda sonora explicita essa referência), David Lynch (a adolescente loira de Veludo Azul), Stanley Kubrick (os travellings circulares e os corredores com as portas abertas) e Brian de Palma (os longos silêncios logo na primeira aparição da protagonista, a boiar na piscina e a mirar-se ao espelho).

A metáfora sexual (típica dos filmes do género) - no presente caso, de doenças sexualmente transmissíveis - é evidente: Jay, uma adolescente que vive nos cinzentos subúrbios de Detroit, é perseguida por uma maldição que lhe foi passada no banco de trás de um carro; trata-se, portanto, de uma maldição sexualmente transmissível, que ganha corpo na figura de um ser sobrenatural que só ela consegue ver, que regularmente muda de feições, que a persegue por todo o lado e que só vai parar quando a conseguir matar. 

Os enquadramentos aproximam-se da genialidade e a interpretação de Maika Monroe (à semelhança da intensa performance de Essie Davis em O Senhor Babadook, de Jennifer Kent) é extraordinária, comprovando que o cinema de terror pode ser um tour de force emocional para os atores.


segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Estado da Nação (13) - Vítor Tito, o cérebro da campanha publicitária do PS

O verdadeiro cérebro dos polémicos cartazes do PS parece ter sido Vítor Tito. Recorde-se que, além de uma desempregada do tempo de Sócrates, os cartazes apresentavam fotos de funcionários de Junta de Freguesia que não sabiam ao que íam (aliás, uma disse mesmo que não autorizara tal uso).

domingo, 25 de outubro de 2015

Jorge Jesus, o cérebro

"As ideias que estão lá são todas minhas. O Benfica não mudou nada, zero. Eu cheguei ao Sporting e mudei tudo. O cérebro já não está lá."
Jorge Jesus, RTP (Agosto de 2015)

quarta-feira, 14 de outubro de 2015

"Galveias" - contra a morte da memória

Galveias, o mais recente romance de José Luís Peixoto, é um ato de amor: um poema em forma de prosa, uma ode à sua terra natal e às suas gentes.

"Por todas as crianças que deixaram a infância naquelas ruas, por todos os namoros que começaram em bailes no salão da sociedade, por todas as promessas feitas aos velhos que se sentavam nos serões de agosto, por todas as histórias comentadas no terreiro, por todos os anos de trabalho e de pó naquela terra, por todas as fotografias esmaltadas nas campas do cemitério, por todas as horas anunciadas pelo sino da igreja, contra a morte, contra a morte, contra a morte (...)."

Em boa verdade, Galveias é um tratado contra a morte da memória; uma carta de amor às raízes, à terra, à família, aos vizinhos, ao povo e aos amigos de infância. Uma obra literária para memória futura. Um clássico que há de ser de leitura obrigatória.

sexta-feira, 9 de outubro de 2015

"The Messengers" - a pior série de sempre?

A estreia de Diogo Morgado como protagonista de uma série de televisão norte-americana dificilmente poderia ter sido pior. A série em causa tem por título The Messengers e parece ter sido financiada por uma qualquer seita religiosa, das muitas que pululam nos media norte-americanos.

Inspirada no apocalipse de S. João, os 13 espisódios narram a tentativa de um grupo de mensageiros de Deus em travar a destruição da humanidade pelos quatro cavaleiros do apocalipse. O objetivo dos anjos é impedir que os cavaleiros quebrem os quatro selos. Pelo meio, são ameaçados e ajudados (sim, ajudados!) pelo diabo (que aqui tem a aparência de Diogo Morgado).

O argumento é um melting pot de teologia barata, ciência de bolso e moralismo de pacotilha. Os atores são péssimos, desajustados das personagens, muito mal caracterizados e risíveis de tão canastrões. Parecem ter sido excluídos de todos os castings, menos deste. E o pior é que não há por aqui qualquer vestígio de humor, é sempre tudo muito sério e dramático quando não há história nem guião que sustente o indispensável pathos. À maneira dos clássicos de Ed Wood, podia ser tão mau que acabasse por ser muito bom. Mas para isso teria que haver mão inteligente e bem humorada. O que os Monty Python não fariam com este material!


quarta-feira, 7 de outubro de 2015

Estado da Nação (12) - a governação PS, segundo Pedro Passos Coelho

"Quando a oposição esteve no Governo, foi um desgoverno para o nosso país. (...) Não podíamos continuar como estávamos. Os portugueses não comem TGV, os portugueses não comem auto-estradas, nem comem dívidas. Têm de as pagar e suportar e, por isso, não se esquecem desse tempo em que se preparou esta crise que agora vencemos." (Julho de 2015)

domingo, 4 de outubro de 2015

Estado da Europa - a democracia Syriza

Panagiotis Lafazanis, o ministro de Tsipras que se demitiu logo após a aprovação do novo acordo, em julho último, revelou que existia um plano do Syriza para dar um "golpe de Estado financeiro" na Grécia. Segundo Lafazanis, os radicais do Syriza iriam tomar pela força, visto ser um processo ilegal, as reservas em notas que estavam no Banco Central da Grécia, cerca de 20 mil milhões de euros. O governador do banco seria preso pelas forças revolucionárias durante o processo. O dinheiro serviria, segundo os esquerdistas radicais, para financiar o regresso ao dracma, visto que a Grécia não tinha sequer dinheiro para imprimir a nova moeda. 

Quantos esquerdistas não desejariam que o mesmo acontecesse em Portugal?

segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Estado do Mundo (31) - Prolegómenos para um mundo perfeito

Um mundo sem fome nem pobreza extrema. Sem sida, sem malária, sem tuberculose. Com educação gratuita para todos. Onde as mulheres não são discriminadas nem agredidas. Onde todos têm acesso a água potável, saneamento e energia moderna. Um mundo com mais renováveis e mais eficiência energética. Com crescimento económico e emprego universal. Em que as cidades e os transportes são verdes. Com mais indústrias e menos poluição. Com os ecossistemas conservados. Em paz e livre da corrupção.

É este o mundo idílico que a ONU aspira atingir dentro de apenas 15 anos. Está tudo numa ambiciosa agenda para o planeta até 2030, que será adotada na cimeira mundial que começou na sexta-feira, dia 25 de setembro, em Nova Iorque e que coincide com o 70º aniversário das Nações Unidas. É uma nova e ampla lista de intenções (que substituem os oito Objetivos do Desenvolvimento do Milénio, adotados em 2000 e que expiram este ano) rumo ao desenvolvimento sustentável.

sábado, 26 de setembro de 2015

"Missão Impossível - Nação Secreta" - revisão da matéria dada

Há vinte anos atrás, o mestre Brian De Palma entregava o seu olhar cinematográfico à série de culto Missão Impossível e, à semelhança do que fizera, na década de 80, a Os Intocáveis, criava um filme de ação novo. Hoje, essas duas obras são clássicos incontornáveis. Só é pena que Missão Impossível não tenha tido o mesmo destino que Os Intocáveis, isto é, que não se tenha ficado apenas por essa película, dando origem a quatro sequelas de outros tantos realizadores, mas nenhum - apesar das evidentes qualidades demonstradas em obras mais pessoais - conseguiu imprimir um olhar que transcendesse o mero entretenimento.

O quinto tomo da saga de Ethan Hunt vem assinado pelo argumentista do exercício de perceção que é Os Suspeitos de Costume, Christopher McQuarrie. A fita tem cenas de ação memoráveis (os três minutos debaixo de água, a perseguição de motas numa autoestrada de Marrocos), uma mulher fatal que - sinal dos tempos - tem a força de Stallone e a destreza de Bruce Lee e até uma aproximação à estética de Brian De Palma (a longa sequência na ópera de Viena). Mesmo assim, não há nada de novo por aqui. Nada que artisticamente distinga Missão Impossível - Nação Secreta dos filmes anteriores ou de um novo capítulo das aventuras de 007.




quarta-feira, 23 de setembro de 2015

[outoniço]


folha que cai
rejuvenescida por saber
que viveu uma época fugaz
que dá origem a outra
vida que se perpetua
entre as margens do ser
porque cair assim,
com dignidade,
é erguer com solenidade
a essência em si.

corpo que cai
alma que apruma tudo
aquilo que aprendeu.

devemos aprender com a folha
e, pelo menos, soerguer
o espírito de vez em quando
deixar a matéria interromper-se
desabando o gesto leviano
para erigir a sensibilidade
outoniça.

Rui Louro Mendes


sábado, 19 de setembro de 2015

Giordano Bruno - um presente de verão à cidade invicta

No dia 12 de setembro do Ano da Graça de 2015, a Casa da Música ofereceu à cidade do Porto uma pérola da Estética e da Filosofia: a estreia mundial da ópera Giordano Bruno.

Com música de Francesco Filidei e libreto assinado por Steffano Busellato, a ação encontra-se dividida entre a cronologia do processo de Giordano Bruno (desde a denúncia em Veneza até à fogueira em Roma) e em cenas inspiradas diretamente na sua filosofia.

Com uma depuração formal impressionante (e menos usual na ópera clássica), a encenação é minimal, embora aqui se exija aos cantores (quer aos solistas quer ao coro) que sejam verdadeiramente atores e até bailarinos. 

terça-feira, 15 de setembro de 2015

"Love and Mercy" - biopic reverencial de Bill Pohlad

Distanciando-se da colagem ao modelo de biopic enquanto género cinematográfico, Bill Pohlad assina em Love and Mercy um filme singular sobre Brian Wilson, a alma criativa dos Beach Boys.

Pohlad centra-se em dois períodos específicos da vida de Wilson: a gravação do clássico Pet Sounds, na década de 60, e a relação disfuncional de Wilson com o seu psicólogo e tutor, já na década de 80.

Paul Dano e John Cusack estão extraordinários nas interpretações que fazem de Brian Wilson nas duas décadas assinaladas. A realização de Pohlad é contida mas segura, apesar de nunca se desviar da reverência ao cantautor, preservando a imagem imaculada de génio criativo atormentado pela memória de uma figura paterna fria e manipuladora (relação que o realizador transfere para a incapacidade de Wilson se libertar, mais tarde, da dependência do psicólogo que viria também a controlar as suas finanças a até a sua vida privada). Contudo, para quem não for fã de Brian Wilson (e, sobretudo, dos Beach Boys), Love and Mercy não terá muito para oferecer.

domingo, 13 de setembro de 2015

Maria João Pires - a woman for all seasons


A gravação dos concertos para piano nº 3 e nº 4 de Beethoven pela pianista Maria João Pires, disco editado em 2014 e gravado com a Orquestra Sinfónica da Rádio Sueca, recebeu o Prémio Gramophone na categoria Concerto. Maria João Pires, que se encontra em digressão europeia, está também nomeada para o Prémio Gravação do Ano, que será atribuído no dia 17 de setembro, numa cerimónia em Londres.

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

"A Supremacia dos Robots" - pequena Hollywood na Europa

Jon Wright parece querer imitar o tom e o estilo dos blockbusters norte-americanos (Spielberg e Michael Bay à cabeça), com um leve toque british em A Supremacia dos Robots. Mas o que poderia resultar num entretenimento interessante (talvez uma espécie de cruzamento entre George Orwell e Philip K. Dick) termina num filme desnorteado e com uma total ausência de pathos. Nem Ben Kingsley e Gillian Anderson se salvam. A evitar!

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

Estado do Mundo (30) - editorial do "Público" de hoje: "Porque publicamos esta fotografia"

Não é fácil olhar para esta fotografia e não foi fácil tomar a decisão de a publicar. É uma imagem que impressiona. O primeiro instinto que temos é desviar o olhar. A seguir olhamos de novo, mas a querer fechar os olhos. No esforço entre olhar e não olhar, acabamos por levar uma estalada duas vezes.
Tínhamos algumas opções: não publicar, publicar uma imagem mais ambígua, ou publicar no espaço mais nobre do jornal.
Há bons argumentos para não a mostrar. É uma imagem violenta, logo evitável; há formas mais subtis de mostrar a realidade sem cair no sensacionalismo, “sem mostrar o horror”, como diz um colega fotógrafo; temos de respeitar a dignidade daquela criança.
Mas há melhores argumentos para a mostrar. Às vezes, é nosso dever publicar imagens impressionantes. Sem pixéis, sem sombras, sem filtros. Vamos de forma paternalista proteger o leitor de quê? De ver uma criança morta à borda da água, numa praia europeia, com a cara na areia? Não é igualmente doloroso ler sobre estas tragédias? Na escrita, não escondemos a realidade. Queremos, pelo contrário, recolher o máximo de factos. Por que é que na imagem usamos critérios diferentes? Porquê ter pudor na imagem, mas não na palavra?
Teríamos tido uma quarta-feira mais simpática se não tivéssemos olhado para esta imagem. Como teríamos tido, há dois anos, um melhor Agosto se não tivéssemos visto os bebés sírios mortos em Damasco com armas químicas. Teria sentido só vermos essas imagens daqui a 50 anos? Esta imagem é uma notícia. É a primeira vez que vemos uma imagem assim. Desde 2013 que lemos sobre mortes diárias no mar Mediterrâneo, de famílias, pais e filhos, que tentam chegar à Europa fugidos da guerra e da pobreza. Em Lampedusa, o Papa Francisco fez um apelo ao “despertar das consciências” para combater a “globalização da indiferença”. O mundo comoveu-se e seguiu em frente. À sua volta, estavam jovens negros de cabelo crespo. Não nos impressionou. Olhámos para eles como aventureiros de países perdidos. Agora os náufragos no nosso mar são brancos de classe média. Tudo neste bebé é familiar. O corpo, a pele, a roupa, os sapatos. Não sabemos se esta fotografia vai mudar mentalidades e ajudar a encontrar soluções. Mas hoje, no momento de decidir, acreditamos que sim.

terça-feira, 1 de setembro de 2015

"Homem-Formiga" - um brinquedo de Peyton Reed

Há momentos interessantes, algum humor e uma certa estética retro no novo filme de Peyton Reed, que são bem-vindos. Todavia, na sua essência, Homem-Formiga é mais um produto Marvel para entreter as massas em dias de estio. Um filme para passar o tempo e comer pipocas.

domingo, 30 de agosto de 2015

Bosquejos de ternura (3) - pobres vítimas do verão

O Tomás combinou com os amigos. Adolescência a cumprir-se. Primeiro, a hipótese de um parque aquático. Seria em Amarante, mas era caro. Por sinal, havia um semelhante em Guimarães, mas muito mais barato. Para Guimarães, então!

De manhã, o despertar bem cedo. Duche retemperador. O pequeno-almoço. As sanduíches apressadas. A lancheira cheia.

Em Guimarães, deparamo-nos com um tanque suficientemente grande para receber nome de piscina e demasiado pequeno para as centenas de veraneantes que tentavam refrescar-se naquela água com cloro. Mini-escorrega sobrelotado. Junto aos bares improvisados, filas de portuguesas a falar francês. É agosto, em Portugal, no seu pior. Os adolescentes, pelo menos, encontram qualquer pretexto para se divertirem.

Estado do Mundo (29) - os refugiados também somos nós

O drama dos refugiados que chegam à Europa agudizou-se esta semana na Áustria, onde um camião foi descoberto junto à estação de serviço de uma auto-estrada com dezenas de mortos no interior. De acordo com o responsável da polícia de Burgenland, região perto da fronteira com a Hungria, o camião chamou a atenção por estar parado há algum tempo. Fluido escorria da porta entreaberta. Análises forenses pretendem agora determinar quantos eram os mortos (notícias recentes indicam que seriam 71!), de que nacionalidades e que idades teriam. A polícia não sabia sequer dizer se havia crianças entre as vítimas, que provavelmente terão morrido sufocadas.

A Europa tem um problema sério entre mãos, que urge discutir e para o qual não se vislumbra solução. O que é certo é que estamos, muito provavelmente, perante o maior drama humano desde a 2ª Guerra Mundial. Há que partilhar responsabilidades e definir políticas de consenso (por mais difícil que seja - afinal, vivemos numa Europa democrática). O que não podemos - nem devemos! - é fazer de conta que nada se passa e assobiar para o lado.

sábado, 29 de agosto de 2015

"Terminator: Genesys" - um reboot por Alan Taylor

Dois Schwarzeneggers em menos de um mês é dose! Na verdade, pai sofre quando tem um filho adolescente que, na infância, viu alguns Schwarzies fundamentais, nomeadamente: Conan e os bárbaros, de John Milius (1982), Predador e O último grande herói, ambos de John McTiernan (1988 e 1993, respetivamente), e os três primeiros filmes da saga Terminator (as duas obras-primas de James Cameron, assinadas em 1984 e em 1991, e o filme assinado por Jonathan Mostow em 2003) - mea culpa, que lhe dei a conhecer essas fitas.

Sinal dos tempos, a movimentada película de Alan Taylor excede-se em caricaturas e ausenta-se de personagens. Há linhas temporais alternativas (mas nada que o saudoso Regresso ao futuro II, de Robert Zemeckis (1989), não tivesse explorado com melhores resultados), interpretações mais ou menos livres da teoria da relatividade (sem o rigor do excelente Interstellar, de Christopher Nolan (2014)) e o inevitável happy end esquemático, que ignora o desfecho apocalíptico da trilogia inicial. Aliás, convém referir que Terminator: Genesys é um reboot da série, o que significa que, em boa verdade, se trata de uma inflexão da história original, alterando o curso dos acontecimentos e características das personagens conhecidas.

Não sendo tão mau quanto Terminator Salvation, realizado pelo inane McG em 2009, o melhor do filme de Alan Taylor é mesmo o T-800 envelhecido, cheio de artroses e bem humorado de Schwarzie.

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Bosquejos de ternura (2) - Sergio Leone

Acabei de dizer ao meu filho que há três filmes fundamentais assinados por Sergio Leone:

- Era uma vez na América (que ele já viu);
- Aconteceu no Oeste;
- O bom, o mau e o vilão.

Neles podemos apreciar a arquitetura de imagens desenhada pelo incontornável cineasta italiano.

terça-feira, 25 de agosto de 2015

Estado do Mundo (28) - (mais) uma nova igreja

O ex-carpinteiro Bill Levin, de 59 anos, fundou no Estado norte-americano de Indiana um culto religioso a que chamou a Primeira Igreja da Canábis. Apesar de ser proibido fumar erva naquele Estado, Levin aproveitou a aprovação de uma polémica lei sobre a liberdade religiosa, que permite "cultos à erva", para fundar a sua igreja.

Definitivamente, a espiritualidade já conheceu melhores dias.

domingo, 23 de agosto de 2015

"Maggie" - Schwarzie por Henry Hobson

Construa-se um guião às três pancadas, sob o pretexto de contar uma história de zombies em tom de drama familiar, ético e intimista. Peça-se a Arnold Shwarzenegger que deixe crescer a barba, que esconda os músculos e que chore. Assim nasce Maggie, um filme em surdina, aparentemente delicado e com uma estética indie, que coloca a câmara sempre próxima dos atores, de modo a lembrar o espetador que se trata de um filme de personagens - e não um filme de ação - e para disfarçar a precariedade dos meios necessários para dar credibilidade a uma fita de ficção científica que se pretende séria, dramática e avessa a ironia, humor ou cinismo. Em boa verdade, o argumento limita-se a encher chouriços para disfarçar a ausência de ideias. Há até cenas que roçam o ridículo (o romance entre os dois adolescentes em fase de lenta transformação em zombies é confrangedor). De resto, nada que a série televisiva The Walking Dead já não tenha feito com melhores resultados.

Não há uma única ideia de cinema por aqui, nem basta humanizar Schwarzie para fazer dele um ator (ele que até já demonstrou maior versatilidade em obras de Reitman e McTiernan). Tivesse Maggie a mão sábia de Clint Eastwood e poderíamos ter ficado com um melodrama ético, comovente e profundo.

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Bosquejos de ternura - uma tarde de agosto


Tarde de Sol na cidade invicta. Turistas a fotografar monumentos, a entrar e a sair de lojas. Rua de Passos Manuel, Avenida dos Aliados e Rua dos Clérigos em calmo rebuliço. Eu e o Tomás em lenta pesquisa de vinis na Tubitek. Perguntas sobre música quase sempre respondidas. Jovem curiosidade salutar. Depois, um saboroso café, um batido fresco e um delicioso bolinho de limão, acompanhados por diálogos sem pressa. O percurso de regresso a casa na vagarosa luz do entardecer. Foi em agosto.

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Legendar o silêncio icónico (29) - o que agita as redes sociais

A fotografia de uma mãe, com o seu bebé em cima das pernas, e a cicatriz de uma cesariana está a dar que falar na Internet. A imagem foi partilhada pela fotógrafa Helen Aller, de Guernsey.
“Não estava à espera que esta fotografia fosse tão partilhada”, pode ler-se na publicação da fotógrafa. Segundo o Daily Mail, a imagem já foi vista mais de 11,5 milhões de vezes e tem cerca de 200 mil likes.
Na publicação, explica que a mulher na fotografia tinha medo de fazer uma cesariana, mas devido a complicações durante o parto, teve de se submeter à cirurgia. Uma operação que acabou por ser mais importante do que alguma vez imaginou. 
“Ela pediu-me para ir ter com ela e tirar esta fotografia, uma vez que o seu pior pesadelo acabou por salvar a sua vida e a do seu filho”. Mas a fotografia, tirada apenas três dias depois do parto, tem recebido tanto elogios como comentários negativos. Há quem a considere repugnante (dizem que é sexualmente explícita) e houve mesmo quem tentasse denunciar a fotografia ao Facebook.
Ainda assim, Helen, que é mãe de duas crianças, explica que a fotografia também tem dado alento a outras mulheres que tiveram de se submeter a uma cesariana. “Muitas disseram que sentiam que tinham falhado. Não tinha noção que era um estigma”, acrescenta. A própria Helen, de 29 anos, está grávida de oito meses e, apesar do sucesso da fotografia, não esconde o receio de ter de fazer uma cesariana. 
[Fonte: Sol, 18/08/15]

terça-feira, 18 de agosto de 2015

Estado da Nação (11) - o Estado Social, de acordo com o PS

O crítico de televisão Eduardo Cintra Torres afirmou na sua coluna, no Correio da Manhã do dia 14 de junho, que "a RTP paga por uma prestação por semana a Carlos César, do PS, mil euros por mês, mais as viagens. (...) É uma indignidade e um roubo aos contribuintes pagarem para o presidente dum dos maiores partidos fazer a sua propaganda num canal do Estado". Por coincidência, César tinha escrito dias antes, no seu facebook que "é fundamental que o Governo da República invista na RTP/Açores", comentário que acompanhava a sua visita ao canal, na qualidade de político.
[Fonte: Sábado, 18/07/15]

sábado, 8 de agosto de 2015

Estado do Mundo (27) - o século XXI, segundo os regimes de esquerda

Tanto a operação "lava jato", no Brasil, como a Operação Marquês, em Portugal, revelam uma pequena parcela da extensão do que foram os regimes de esquerda durante a primeira década do século XXI. O expansionismo económico dos seus programas políticos serviu como desculpa para obras megalómanas que enriqueceram apenas alguns. Bem conectados a empresas de construção e à banca, os tentáculos da esquerda infiltraram-se em todos os setores das nossas sociedades, formando uma enorme rede de influência que ainda estamos a descobrir. Os efeitos práticos, no entanto, já os conhecemos. Aliás, a quase bancarrota portuguesa de 2011 é um deles!

No entanto, a boa notícia é que a Justiça, após tantos anos de sonambulismo, está finalmente a investigar ativamente figuras sacrossantas da esquerda brasileira e portuguesa. Esperemos agora que os tribunais decidam e condenem com rigor, isenção e imparcialidade.

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

A investigação científica, segundo Tim Hunt

"Quando há mulheres no laboratório apaixonamo-nos e quando as criticamos, elas choram."

Tim Hunt, responsável pela afirmação em epígrafe, foi galardoado com o Prémio Nobel da Medicina, corria o ano da graça de 2001. A avaliar pela frase supracitada, o bioquímico converteu-se em humorista, o que, muito provavelmente, terá sido a causa da sua recente demissão da Universidade de Londres. De acordo com Tim Hunt, mulheres e homens cientistas (não necessariamente por esta ordem) deviam trabalhar separados.

terça-feira, 4 de agosto de 2015

Estado do Mundo (26) - mais um apocalipse com data marcada

Muitos sites religiosos têm nova data para o apocalipse: entre 22 e 28 de setembro deste ano. De acordo com alguns (pseudo)teólogos, a Terra será destruída por um asteróide por castigo divino. Neste contexto, o The Mirror revela que alguns sites associam a este evento um exercício das tropas norte-americanas, que irá ter lugar brevemente. A NASA já negou esta possibilidade. Contudo, por cá, António Costa poderia ver no apocalipse a solução para evitar a humilhante derrota que sofrerá nas próximas legislativas.

sexta-feira, 31 de julho de 2015

Estado do Mundo (25) - o poder, segundo o Rei Salman

A Arábia Saudita realizou, no passado dia 15 de Junho, a 100ª execução de 2015, ultrapassando o registo do ano passado (87 condenações à morte). Estes dados colocam o reino saudita a caminho de bater o seu próprio recorde, que é de 192 execuções anuais, há precisamente 20 anos atrás. Segundo o Middle East Eye, os números são culpa do Rei Salman, acusado de confundir a Justiça com o Poder monárquico.

terça-feira, 28 de julho de 2015

So long, Ornette Coleman!

Ornette Coleman faleceu no dia 11 de junho, em Nova Iorque, aos 85 anos, de paragem cardíaca. A grande maioria dos obituários que lhe foram dedicados na imprensa americana não lhe chamou músico de jazz, preferindo nomes mais ousados, como "inovador", "disruptor", "revolucionário" ou "mestre". Isto porque, se a música é uma linguagem com uma gramática própria, Ornette Coleman quebrou de forma vívida e convicta algumas regras dessa gramática, construíndo, ao longo da carreira, novas estéticas no jazz. 

Em 2001, esteve no Barbican Centre, em Londres, para um espetáculo, levando consigo um elenco de rappers, bailarinos, cantores de ópera e músicos tradicionais chineses. Mas ninguém estranhou. Bem pelo contrário! Coleman, que nasceu em 1930, lutara a vida inteira por passar a ideia de que não há fronteiras na música, desde que seja boa. Era a sua marca pessoal.

Este singular saxofonista estabeleceu-se em Los Angeles e conseguiu editar vários discos desrespeitando as regras clássicas de harmonia e ritmo do jazz. Destacam-se os álbuns The Shape of Jazz to Come, Change of the Century e Free Jazz. John Coltrane afirmou em 1961 que os apenas 12 minutos em que tinha estado em palco a tocar com Coleman constituíram "o momento mais intenso" da sua vida. Eclético, Ornette Coleman chegou a gravar com músicos tão díspares como Lou Reed, Yoko Ono e Pat Metheny. Em 2007, recebeu o Prémio Pulitzer com o histórico álbum Sound Grammar e um Grammy pela carreira.


domingo, 26 de julho de 2015

A vida entre parêntesis - Capítulo 3 (sementes numa mini-maratona)

José Lucas irritava-se com a contemporânea obsessão pelo desporto e pela boa forma física. Parecia que vivíamos numa época de não-morte e de culto da vida eterna. Que não se confundisse isto com uma espécie de ritual apolíneo nem tampouco com espiritualidade. Não, a fixação consumista era mesmo com o culto do eu. O self. As selfies. Pobre vocabulário reinventado.
As maratonas - que agora assumiam a forma de minis e meias - pareciam competir com os festivais de música: começaram timidamente até dominarem a publicidade, invadirem praças, parques naturais e baldios.
Incomodava-o ver novos, velhos, deficientes motores, doentes (quase) terminais, todos sorridentes, em calções, a caminhar aos encontrões, a correr ou a serem empurrados como se se tratasse somente de um passeio relaxante. E a morte uma eterna coisa adiada.

(Esta gente julga que não vai morrer. Porventura, acham  que um ou dois anos mais de vida significa alguma coisa na Grande História Universal. Ou na História Cósmica. Estas pessoas levam-se demasiado a sério. Sobrevalorizam-se. Ou, como diria o meu avô, esta gente pensa que vai ficar cá para semente.)

Após vencer a maratona nos Jogos Olímpicos de Los Angeles, em 1984, sempre que José Lucas via o Carlos Lopes como convidado em programas de televisão ou como rosto da publicidade a uma marca de iogurtes, ficava impressionado com o ar pouco saudável que o antigo atleta aparentava. Parecia alguém que, após anos de privação alimentar forçada, inchara à custa de bom vinho e de duas doses de cozido à portuguesa por refeição.

(Fazia-lhe bem umas caminhadas. Ao Carlos Lopes. Digo eu!)

terça-feira, 21 de julho de 2015

"House of Cards" - a corrupção democrática

O sistema político norte-americano apresenta incontáveis diferenças em relação ao nosso. Trata-se de uma república democrática, é certo, mas com muitos e distintos Estados, e outros tantos Governadores, além de se tratar de um regime presidencialista; todavia, na sua essência é uma democracia similar à nossa, a mais antiga e - talvez - exemplar. Na verdade, o republicanismo norte-americano deu ao mundo figuras modelares da importância de Lincoln, Roosevelt ou Kennedy. Figuras inspiradoras. Father figures.

Mas na era dos mass media e dos sound bites, a democracia partidária já passou há muito a idade da inocência. House of Cards, a série produzida por David Fincher para o Netflix (em Portugal passa no TV Séries), recorda-nos os fundamentos da descrença na democracia representativa. Representativa de quê? De interesses pessoais; de lobbys (políticos, económicos, empresariais, que se servem do manto de sinceridade de algumas ONG para servirem monopólios e altos interesses financeiros); de chicana político-partidária (dentro de um partido ou Governo constrói-se e destrói-se a imagem pública de alguém ao ritmo de um estalar de dedos); de gente que se serve em vez de servir a coisa pública; de traições e deslealdades.

Em boa verdade, House of Cards é um ensaio sobre o poder político e aquilo que ele faz aos homens. À semelhança de uma tragédia shakespeariana, a sede de poder corrompe e corrói o melhor (e, por isso mesmo, o mais frágil) da essência humana. O Mal impera e jamais será vencido pelo Bem ou por uma ideia platónica de Justiça.

Pode o Presidente da República ser um corruptor assassino? Sim. E ninguém melhor do que Kevin Spacey para o representar.

quinta-feira, 16 de julho de 2015

[formas de viver]

quantos refugiados há por esse mundo!
gente sem país, carente de pertença
descalços sobre terra quente e deserto abrasador
temem pelo futuro dos seus filhos
desejam-lhes uma vida melhor.

quantos refugiados há por esse mundo!
gente com língua mas sem pátria
amontoados em botes, embarcações sem bússola ou capitão
em campos sem fronteiras
aceitam tendas como casas, hospitais e escolas.

quantos de nós se sentem como eles?
quantos de nós também se sentem refugiados?

casas, carros, férias, hotéis, hipotecas,
         workshops, formação contínua,
         melhores salários, crise económica,
         euro, dólar, capitalismo, democracia,
         o colega competente, o colega incompetente,
         a nota abaixo da média.

- aqueles refugiados também somos nós.

Rui Louro Mendes

segunda-feira, 13 de julho de 2015

A vida entre parêntesis - Capítulo 2 (O Pensador)


Entrou no café, pensativo. Não fosse o estabelecimento chamar-se O Pensador e José Lucas sentir-se-ia um estranho. Estrangeiro. Alienado. Estranho estrangeiro alienado. Em boa verdade, também ali ninguém ousava pensar.

(Até n' O Pensador!)

Sentou-se. Pediu um café. Acendeu um cigarro. Na televisão um par de apresentadores, histéricos, discutiam com um psicólogo os motivos de um crime passional ocorrido no Seixal. O empregado serviu-lhe o café.

(Pode levar o pacote de açucar.)

Com a pequena colher, mexeu o café, hábito que adquirira dos tempos em que costumava pôr um pouco de açucar.
Lá fora, começou a chover.

sexta-feira, 10 de julho de 2015

[sinestesia]

a José Tolentino Mendonça
  
desvios locais
não são formas
não são sinais 
fontes de perigo
em perpétuos romances
de líbido renascida.
perfumes, odores vários,
perversa sinestesia,
tempo de mármore
petrificado
em esculturas de desarmonia.

desvios locais,
cuidado com os animais!
presos ao seu instinto
em cruel desatino
tontos de obsessão
deixam suas crias em desamparo
vão à caça
guiados pelo olfato
primária vocação
de quem à natureza se entrega.

Rui Louro Mendes

terça-feira, 7 de julho de 2015

Estado da Nação (10) - Costa, o improvável


Alguém ainda acredita na sinceridade e no rigor das promessas de António Costa? Haverá ainda quem considere que o programa de Governo do PS é constituído por propostas que Costa e seus parceiros pretendem efetivamente concretizar? Alguém acredita que Costa esteja convencido de que tem uma alternativa para o País? Já agora, alguém acredita que o anterior primeiro-ministro de Portugal está a ser vítima de uma conspiração política injusta e infundada?

quinta-feira, 2 de julho de 2015

"Gotham" - a infância de Bruce Wayne

Inspirada em personagens do universo da DC COMICS, sobretudo cúmplices e vilões da saga Batman, Gotham não é a experiência televisiva ousada que prometia ser, sendo antes uma produção de cariz clássico com bons, maus e vilões, que cumpre os pergaminhos necessários ao acolhimento positivo por parte de público e crítica. A primeira temporada termina de forma interessante, mas os 23 episódios que a constituem podiam ser mais góticos. Mas, para isso, teríamos que ver o nome de Tim Burton associado a esta prequela das aventuras de Batman.

terça-feira, 30 de junho de 2015

Banda sonora para o Verão - Steven Wilson: "Hand. Cannot. Erase."


Aviso à navegação: o novo álbum de Steven Wilson é uma obra de arte. Concetual, como convém na obra do rocker britânico, Hand. Cannot. Erase. é uma peça única na história da música popular. Inspirado na história verídica de uma mulher que terá estado morta durante três anos no seu apartamento, numa cidade do interior de Inglaterra, sem que ninguém tivesse dado pela sua falta, o disco tem a alma de um ser maior. Conselho a quem não está familiarizado com o universo dos LP concetuais: comece por ouvir  Perfect Life, Happy Returns e a canção-título. Esta era de música enlatada e de canções soltas dificulta o treino da sensibilidade. Mas, como diria Pavlov, o exercício apura o gosto estético. Para os mais exigentes, aconselha-se a compra da edição em vinil.


quinta-feira, 25 de junho de 2015

"Spy" - lixo cinematográfico de Paul Feig

A comédia é um dos géneros fundadores da narrativa cinematográfica tal como a conhecemos. Género popular por excelência, deu ao mundo obras-primas assinadas por autores maiores: Charles Chaplin, Buster Keaton, Preston Sturges, Billy Wilder, Ernst Lubitsch, Blake Edwards, John Landis. E ficamos por aí. Os grandes autores de comédia desapareceram há décadas. 

Paul Feig foi responsável pela comédia "A Melhor Despedida de Solteira", película que cumpria os seus propósitos graças a uma atriz secundária. A mesma que agora protagoniza "Spy".

Lixo cinematográfico. Filme-veículo para a comediante norte-americana do momento, Melissa McCarthy. Enquanto der para capitalizar a sua popularidade continuará a fazer filmes que não deixarão rasto e, provavelmente, em menos de uma década a atriz será esquecida.

[Sugere-se a revisão de "48 horas", de Walter Hill, "Os Ricos e os Pobres", "Um Princípe em Nova Iorque", ambos de John Landis, e "Os Reis da Noite", de Eddie Murphy, para entender a razão por que Eddie Murphy ainda não foi esquecido.]


quarta-feira, 24 de junho de 2015

A vida entre parêntesis - Capítulo 1 (Jesus na Grécia)


Quando, finalmente, conseguiu um lugar para se sentar, na parte de trás do autocarro, José Lucas esforçava-se por não pensar mais naquele assunto que o atormentava desde o dia anterior.

(Poderia a Grécia sair da Zona Euro?)

Escutava com atenção as conversas à sua volta e não entendia a indiferença das gentes de Lisboa. E se era assim na capital, como seria no resto do país?...
Não, José Lucas nunca lidara bem com a indiferença perante o que é realmente importante: as pessoas, as famílias, o cidadão, a microeconomia, a justiça, o outro.

(O que aconteceria se a Grécia não chegasse a acordo com o Eurogrupo?)

O conformismo, a obediência passiva a patrões e burocratas incomodava-o ao ponto de lhe tirar sono. Na última noite não pregara olho.
Quando saiu do autocarro pegou num dos jornais gratuitos do expositor junto à paragem. Leu o título em destaque.

(Jesus já prepara a nova época no Sporting).

domingo, 21 de junho de 2015

Banda sonora para o Verão - A Secret River: "Colours of Solitude"


Segredo bem guardado no sul da Suécia, A Secret River é música composta com todos os sentidos. Fazendo (novo) uso de harmonias clássicas do rock progressivo mais melodioso, a banda nórdica assina Colours of Solitude, um disco onde o todo é mais do que a soma das partes. É música para sonhos bucólicos com a luz de um fim de tarde de verão.



quinta-feira, 18 de junho de 2015

"Mad Max: Estrada da Fúria" - o regresso de George Miller

O novo capítulo da saga pós-apocalíptica Mad Max é um extraordinário delírio visionário de um cineasta que, aos 70 anos, assina um filme de ação movido a energia adolescente e savoir faire de autor veterano.

Na verdade, George Miller parece ter sentido saudades do cinema instintivo da trilogia protagonizada por Mel Gibson há 30 anos atrás. Como se trata de uma prequela do capítulo produzido em 1985, Tom Hardy assume com competência o lugar do ator australiano ladeado por uma insólita companheira de luta de olhar intenso e alma ferida (Charlize Theron como nunca a tinhamos visto).

O futuro segundo Miller é assim: um lugar inóspito, abrasador, desértico, quase irrespirável, mutante, em tumorização, pós-anarquista, pós-darwinista, onde a força bruta garante o poder, que é o mesmo que dizer água e gasolina.

"Mad Max: Estrada da Fúria" é o melhor e mais ousado filme de ação desde o irrepetível "Streets Of Fire", orquestrado por Walter Hill em 1984.


domingo, 4 de janeiro de 2015

"Interstellar" - um Kubrick para o século XXI

Não chega a ser uma obra-prima (sobretudo, se tivermos em conta o final algo apressado, deixando algumas pontas soltas na interessante narrativa), mas Interstellar é, por enquanto, o melhor herdeiro de 2001 - Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick. A película de Christopher Nolan é um filme profundo e visionário, que só não se aproxima da obra anterior devido às cedências, por vezes, lacrimejantes como garantia do pathos e do apelo às massas. Tivesse um pouco mais da ousadia do cineasta britânico e Interstellar seria um tratado filosófico sob a forma de sétima arte. Ainda assim, é, juntamente com Insomnia (2002), o melhor filme de Nolan.

Breves notas sobre o cinema de Wong Kar Wai (6) - "Disponível Para Amar" (2000)

E, no ano da graça de 2000, Wong Kar Wai alcançou o zénite da sua (sétima) arte com a obra-prima Disponível Para Amar . É (mais) uma históri...