domingo, 30 de setembro de 2012

"Para Roma, com Amor" - a comédia, segundo Woody Allen

Depois de filmar em Londres ("Matchpoint", "Scoop" e "Vais Conhecer o Homem dos Teus Sonhos"), Barcelona ("Vicky Cristina Barcelona") e Paris ("Meia-Noite em Paris"), Woody Allen regressa com mais um olhar sobre a Europa, desta vez com Roma como cenário para uma comédia inteligente e sofisticada. Não se entenda por esta última palavra a cedência a técnicas contemporâneas de desenhar planos, mas antes a continuação de uma estética clássica que Allen cultiva e consegue tornar sempre sua.

"Para Roma, com Amor" narra quatro histórias distintas que nunca se chegam a cruzar: (1) um arquiteto americano de férias em Roma conhece um jovem estudante de arquitetura, reportando-o para memórias de um triângulo amoroso que ele próprio viveu na cidade eterna, trinta anos antes; (2) um encenador de óperas com uma carreira repleta de fracassos críticos e comerciais descobre que o pai do noivo da sua filha, apesar de ser um simples armador, tem uma espantosa voz de tenor, mas só é capaz de cantar no chuveiro; (3) um vulgar e anónimo trabalhador da classe média vê-se, subitamente e sem qualquer razão aparente, perseguido por paparazzi e alvo das atenções dos media italianos (o que permite a Allen fazer uma interessante reflexão acerca dos reality shows e das suas celebridades instantâneas); (4) um casal de província chega a Roma a sonhar com uma vida faustosa na capital, mas uma prostituta e o traçado labiríntico da grande cidade vão alterar os seus planos (narrativa que permite ao autor de "Annie Hall" prestar uma divertida homenagem à comédia italiana das décadas de 60 e 70 do século passado).

É certo que a mais recente fita de Woody Allen não está à altura das obras-primas do cineasta. Todavia, como bem sabemos, uma obra de Allen é sempre garantia de cerca de duas horas bem passadas e nunca se sai da sala de cinema vazio. No presente caso, saímos com um sorriso nos lábios.

Trailer de "Para Roma, com Amor" 

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Legendar o silêncio icónico (25) - a Síria também somos nós (4)

18 de setembro de 2012. À saída de um hospital da massacrada cidade de Alepo, no norte da Síria, um homem leva ao colo a sua filha, ferida durante os confrontos entre o exército e forças da oposição civil ao regime ditatorial. O amor incondicional atravessa fronteiras e não escolhe etnias ou credos. E nós, ficaremos indiferentes até quando?

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Banda sonora para o outono (24) - "Tempest", de Bob Dylan

Patriarca dos cantautores, poeta por excelência, vencedor do Pulitzer, um dos candidatos ao Prémio Nobel da Literatura (há quem diga que este ano vai parar às suas mãos), trovador folk e blues carregado de aspereza na voz, músico rock incontornável, ativista político (mesmo que sempre tenha recusado tal epíteto), vencedor de um Óscar, Bob Dylan é tudo isto e muito mais. A sua vida já deu um fabuloso documentário assinado por Martin Scorsese; a sua obra inspirou ícones como Bruce Springsteen; as suas composições têm contribuído para a luta pela defesa dos Direitos Humanos. O mundo comemora este ano o simbolismo de 50 anos de carreira do músico maior do século XX, aproveitando o lançamento do seu 35º LP, "Tempest". E que disco, senhores!

Para quem ainda estiver na disponibilidade de escutar repetida e concentradamente um disco, facilmente se deixará levar pela gentileza melódica de "Duquesne Whistle", a sinceridade crua de "Pay In Blood", o romantismo de "Scarlet Town", a nostalgia trágica do tema-título (ode centenária ao Titanic) e o saudoso abraço de "Roll On John" (canção para relembrar outro ícone do século passado, o enorme John Lennon).

"Tempest" está aí para quem quiser perceber por que Bob Dylan vai ganhar o Nobel e por que será o artista mais celebrado deste fim de ano.

Bob Dylan - "Duquesne Whistle"

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

O Estado da Nação - Mário Soares, o último monarca português


Mário Soares afirmou recentemente que "o Governo está moribundo", pedindo a sua substituição sem recurso a eleições antecipadas. Este é o mesmo animal político que, quando era primeiro-ministro do IX Governo Constitucional, entre 1983 e 1985, advogou que "os problemas económicos de Portugal são fáceis de explicar e a única coisa a fazer é apertar o cinto". Acrescentou que "quem vê, do estrangeiro, este esforço e a coragem das medidas impopulares aprecia e louva o esforço feito por este Governo". Lembrou ainda que "Portugal habituara-se a viver, demasiado tempo, acima dos seus meios e recursos". Nesses anos da década de oitenta, assim que tomou posse o Governo do Bloco Central, liderado por Soares, iniciaram-se conversações com o FMI, das quais resultaram um acordo com medidas de austeridade extremamente duras. Em boa verdade, esse foi já o segundo memorando com o FMI assinado pelo antigo líder do PS, que repetira o que tinha feito em 1977. 

Convém não esquecer que o Governo liderado por Pedro Passos Coelho vai cortar 30% dos financiamentos à Fundação Mário Soares, que recebeu do engenheiro José Sócrates 1,2 milhões de euros entre 2008 e 2010. Muito provavelmente, Soares ainda sabe fazer contas quando se trata de viver à custa do Estado. E ainda há quem não veja a marosca e lhe dê crédito?

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Legendar o silêncio icónico (24) - o Sudão também somos nós

No campo de refugiados de Juba, no Sudão do Sul, uma jovem prepara o pequeno-almoço para os seus irmãos. Relembre-se que nesse país decorre uma das maiores crises humanitárias de que há memória. Sim, o Sudão também somos nós.

sábado, 15 de setembro de 2012

Ecologia e crise

A falta de visão de conjunto, a incapacidade de articular as diferentes escalas dos problemas, as diferentes agendas das dificuldades, que são as queixas mais frequentes aos processos de decisão política em curso, estão também a ocorrer no domínio da crise ambiental que estamos a atravessar e a propagar de forma irremediável.

Em boa verdade, estamos contínuamente a quebrar os elos, a eliminar conexões e as relações com o resto da Natureza, tornando-os cada vez mais precários. Vamos, como espécie, devorando o planeta Terra, como se ele fosse um mero armazém, e não o nicho, o corpo, o berço, onde a identidade humana ganha contorno, realidade e possibilidade de duração. A religião do crescimento prega a intensificação da perda desses laços e a vitória do olhar de armazenista sobre qualquer outro. Um armazenista que delapida, não que entesoura e preserva. Crescer significa consumir, significa intensificar o ritmo da devastação, do cortar de laços com todos os outros (espécies diferentes, povos ou populações mais frágeis), de aumentar mais e mais a pegada humana, de acentuar desmesuradamente a apropriação do mundo pela pilhagem devoradora, como ontem o fizemos pelo sangue, suor e lágrimas.

E esta devastação, deve causar-nos pena ou revolta? Talvez ambas as coisas, pois a sua natureza moral é aparentemente evidente. Mas, sobretudo, deve causar pena, pois o que está em causa mais do que um crime é um erro. E o erro remete sempre para uma mente embutida, ignorante, enviesada. As organizações, os Estados, os partidos e as empresas conseguem ser ainda mais egoístas, mais errados, mais idiotas do que os indivíduos. À sucessão das suas decisões, surpreendentemente destituídas de sensatez, chamamos História, ou, como disse um dia Konrad Adenauer, "a soma das coisas que poderiam ter sido evitadas...".

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Legendar o silêncio icónico (23) - a Síria também somos nós (3)

2 de setembro de 2012. Um menino sírio, ferido durante os confrontos na cidade de Alepo, é tratado num hospital próximo da frente de guerra. O que lemos no seu olhar? Clemência? Tréguas? Socorro? O absurdo da guerra? Com certeza que para esta criança o mundo é todo assim. Que marcas, porventura irreversíveis, a guerra deixará em tantas crianças cuja infância foi roubada?

domingo, 9 de setembro de 2012

Banda sonora para o verão (24) - Squackett

Squackett é o nome de um projeto musical que tem vindo a unir a criatividade de dois veteranos do rock progressivo: Chris Squire (baixista dos Yes) e Steve Hackett (guitarrista dos Genesis durante a primeira década de atividade desta histórica banda). "A Life Within a Day" é o título do álbum que lançaram há 3 meses atrás. 

Não sendo uma obra-prima (não seria, aliás, de esperar isso de dois músicos que já não têm nada a provar ao mundo e que apenas fazem a música que bem lhes apetece e lhes dá prazer), é um disco interessante, que contínuamente solicita repetidas audições. Estando uns furos abaixo do resultado final dos trabalhos das bandas onde estes virtuosos instrumentistas alcançaram popularidade (sobretudo, ao nível do trabalho vocal a cargo dos dois Squackett, bem aquém das vozes distintas de Jon Anderson e Peter Gabriel, primeiros frontmen dos Yes e dos Genesis, respetivamente), ainda assim, em "Life Within a Day", estamos perante um longa duração que transparece um genuíno amor à música por parte de artistas que exigem de si mesmos uma permanente vitalidade. 

Em boa verdade, este poderia ser um disco de uma banda nova, tal a frescura ao nível da produção das canções. E há quatro momentos de autêntica antologia pop (e não, como seria de esperar, prog rock) a assinalar: Divided Self, Aliens, Sea Of Smiles e Can't Stop The Rain. São canções bem orelhudas, que dariam 4 perfeitos singles se o airplay das rádios nacionais se pautasse pelo bom gosto.

Squackett - "Aliens"

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

"Jesus Cristo bebia cerveja" - descobrir Afonso Cruz

Jesus Cristo bebia cerveja  é um romance de um dos escritores mais fortes e originais da literatura portuguesa deste século. Nome a reter: Afonso Cruz. Estamos perante um escritor consumado, que, como bem referiu Miguel Real no Jornal de Letras, é "tão original quanto profundo", capaz de criar personagens comoventes na sua plena humanidade: frágeis, simples e complexos, contraditórios, bons e cruéis, sonhadores e pragmáticos. Mais do que isso, o autor consegue a proeza de fazer daquele romance um melting pot de filosofia, ciência, religião e senso comum, envolvendo o leitor da primeira à última página. 

Desafio o leitor a comprar Jesus Cristo bebia cerveja e a tentar adiar a leitura de mais um capítulo. Sim, porque se trata de um romance de leitura compulsiva. No fim da última página fica a vontade de procurar mais obras de Afonso Cruz, e já está aí um novo livro, por sinal extremamente interessante: Encilcopédia da Estória Universal: Recolha de Alexandria.

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Legendar o silêncio icónico (22) - a Síria também somos nós (2)

24 de agosto de 2012, cidade de Alepo, norte da Síria. Um menino sírio que ficou ferido quando uma bomba, lançada pelas forças do regime, atingiu a sua casa espera num hospital para ser tratado. Na expressão do seu rosto podemos ler toda uma infância roubada.

Quantos de nós param para refletir sobre o sofrimento de milhares de crianças que são, diariamente, fustigadas pelo drama da guerra? Quantos, de entre nós, procuram imaginar tal dor? Quantos são capazes de pensar no quão afortunados somos por viver em paz?

Infelizmente, são sempre muitas as pessoas que não pensam nem sentem para além do seu umbigo e, em vez de aproveitarem a paz, preferem a incerteza da guerra.

terça-feira, 4 de setembro de 2012

Tony Scott (1944-2012)

Como muitas outras pessoas da minha geração, descobri o cinema de Tony Scott com a sua segunda longa-metragem, Top Gun (1986). Escusado será descrever a forma como tal espetáculo visual me impressionou aos 14 anos de idade. Nunca tinha visto nada que se comparasse àquele sedutor objeto filmado nos céus. Claro que o filme fez mais pela carreira de Tom Cruise e pela reputação da Força Aérea do que pela Sétima Arte. Mas não devemos desvalorizar Top Gun por pretender ser tão e somente um (muito bom) entretenimento, dado que o cinema é, acima de tudo, uma arte de massas e é nessa matriz popular que devemos incluir uma parte considerável da filmografia de Tony Scott. Neste sentido, O Caça-Polícias 2 (1987), Dias de Tempestade (1990), A Fúria do Último Escuteiro (1991), Adepto Fanático (1996), Domino (2005) e Imparável (2010) permanecerão enquanto objetos exemplares da arte de criar grandes espetáculos sem perder marcas autorais. Na verdade, é na forma de filmar que o cinema de Tony Scott sempre se distinguiu dos demais: câmara precisa mas sempre em movimento, uma montagem frenética, personagens definidos nos primeiros cinco minutos de filme, violência crua e doses de testosterona em personagens herdeiros da filmografia viril de um Howard Hawks ou de um Samuel Fuller.

No entanto, Tony Scott foi revelando uma urgência de complexidade em muitas outras películas, sendo altura de rever e revalorizar obras como Fome de Viver (uma inovadora história de vampiros realizada em 1983 e que ainda hoje empalidece as recentes revisitações da história criada por Bram Stocker; é também um filme pop protagonizado por um impressionante David Bowie e uma belíssima Catherine Deneuve), A Vingança (um drama adulto e intensamente violento, realizado em 1990), True Romance (obra crua de 1993, a partir de um guião de Quentin Tarantino), Maré Vermelha (drama de cortar a respiração, com dois excelentes Denzel Washington e Gene Hackman; 1995), Inimigo Público (pesadelo orwelliano que nos revelou todo o potencial político da internet; 1998), e três outros filmes que prolongam uma das associações artísticas mais bem sucedidas do cinema norte-americano, isto é, aquela que uniu em amizade e em trabalho, Tony Scott e Denzel Washington: Homem em Fúria (2004), Déjà Vu (2006) e Assalto ao Metro 123 (2009). Os dois colaboraram em 5 filmes de qualidade superlativa.

Foi com realizadores como Tony Scott que a indústria de Hollywood construiu uma série de obras que hoje estão inscritas na memória coletiva. Apesar de uma ou outra fita menor (tal como outrora também artesãos como Michael Curtiz ou Henry Hathaway tiveram alguns tiros ao lado), Tony Scott ficará, com certeza, na história do cinema como um realizador visionário, singular e - esperemos - incontornável.

sábado, 1 de setembro de 2012

E foi agosto...


E foi agosto
Por entre a espuma dos dias
Embalado pelas ondas do entardecer
E agasalhado pelo sorriso de uma criança

Galga as rochas
Atira o pequeno seixo ao mar
Fá-lo saltar sobre a água salgada
E, assim, enche-te de maresia

Por agora foi agosto
Que regressará, retornará um dia,
No próximo verão, tenho a certeza,
O teu rosto será ainda mais exultante!

E foi agosto
Em teus olhos.
Sabes, eles são o Sol
Que em ti se faz a aurora de um novo dia.

Breves notas sobre o cinema de Wong Kar Wai (6) - "Disponível Para Amar" (2000)

E, no ano da graça de 2000, Wong Kar Wai alcançou o zénite da sua (sétima) arte com a obra-prima Disponível Para Amar . É (mais) uma históri...