terça-feira, 25 de outubro de 2022

Banda sonora para o Outono (42) - David Cross and Andrew Keeling: "October Is Marigold"

Na semana em que iremos passar à hora de inverno, e em pleno mês de outubro, nada como escutarmos um disco pensado, precisamente, como banda sonora para o outono. Trata-se de música de câmara com harmonias eletrónicas que traduzem a imagética desta estação do ano em paisagens sonoras executadas com a mestria própria de dois compositores gigantes, oriundos do rock progressivo e da música clássica. October Is Marigold deve ser fruído do princípio ao fim. 

domingo, 23 de outubro de 2022

Banda sonora para o Outono (41) - a-ha: "True North"

Banda com quase quatro décadas de percurso artístico e criativo, os a-ha ficaram, irreversivelmente, marcados pelo hit Take On Me, canção que, em boa verdade, abria um álbum - Hunting High and Low (1985), de seu nome - que estava cheio de melodias pop bem urdidas e quase todas mais interessantes do que aquele single. 

Uma dezena de álbuns de originais depois, o grupo norueguês continua em boa forma, tendo lançado esta semana um disco orquestral, pleno de canções compostas com o cuidado e o rigor próprios da maturidade que os quarenta anos de experiência musical tornam possível. Convém sublinhar que True North (assim se chama o LP) é um disco pop, sim, mas contra a corrente, avesso a modas ou a sonoridades mais modernas, optando por harmonias intemporais, muito graças à colaboração com a Orquestra Filarmónica do Árctico. 

Carta de amor à natureza, True North é uma obra maior do que a soma das suas partes. Um dos discos do ano - vale a pena ouvi-lo do princípio ao fim.



segunda-feira, 17 de outubro de 2022

“Uma Paixão Simples” – Annie Ernaux (1) por Danielle Arbid

 

Para muitos, Annie Ernaux talvez seja maior descoberta literária de 2022. No entanto, apesar da postura discreta, a escritora já há muito que é, sobretudo em França, um nome prestigiado das letras. A sua obra é pioneira num registo que vem sendo designado como autoficção, embora na entrevista que deu ao Expresso (publicada na edição do último fim de semana) a autora considere mais ajustado o termo cru e direto ao osso – biografia.

Um dos seus livros mais conhecidos é, precisamente, Uma Paixão Simples (editada em Portugal pela Livros do Brasil), que, em 2020, foi adaptado ao grande ecrã por Danielle Arbid, tendo obtido a honra de integrar a seleção oficial de Festival de Cannes desse ano.

Se quisermos identificar um bom exemplo de narrativas que, em mãos capazes, funcionam da melhor forma em livro mas não em cinema, Uma Paixão Simples será uma escolha adequada.

Conta a história de uma professora universitária que se envolve romanticamente com um enigmático diplomata russo (e, já agora, fervoroso admirador de Putin).

Imagino que um mestre como Wong Kar Wai faria de tal material narrativo (que, como o título indica, é bem simples) um grande melodrama, mas não é o cineasta de Hong Kong quem quer. Por isso, enquanto cinéfilos, ficaremos infinitamente melhor servidos revendo a obra seminal de Kar Wai, Disponível Para Amar.

Uma nota positiva para o bom trabalho dos atores e para a excelente banda sonora. Contudo, estes são pormenores que não bastam para salvar o filme do imenso vazio a que se entrega.

domingo, 16 de outubro de 2022

Estado da Nação (39) - Um Governo a governar-se a si próprio

Pedro Nuno Santos, ministro das Infraestruturas e da Habitação (e putativo futuro primeiro-ministro), atribuiu dinheiros públicos a uma empresa da sua família.

Manuel Pizarro, ministro da Saúde, é casado com a bastonária da Ordem dos Nutricionistas e, até há uns dias, detinha uma empresa na área da Saúde.

Ana Abrunhosa, ministra da Coesão Territorial, concedeu milhares de euros em fundos europeus a duas empresas do marido.

É a maioria socialista a reforçar que este é mesmo o País rosa.

sábado, 15 de outubro de 2022

"Blonde" - Marilyn por Andrew Dominik

 

Adaptação do romance (inspirado na vida de Marilyn Monroe) de Joyce Carrol Oates com o mesmo título, Blonde é, por enquanto, o acontecimento cinematográfico do ano. É verdade que o filme de Andrew Dominik, estreado no Festival de Cinema de Veneza de 2022, foi produzido (e diretamente disponibilizado) pela plataforma Netflix, quando merecia visionamento no grande ecrã, mas é de Cinema que estamos a falar.

O filme não pretende ser um biopic, embora os espetadores mais incautos possam vê-lo enquanto tal. É antes uma adaptação tão fiel quanto possível de um romance com o epíteto de inadaptável.

Blonde é uma obra barroca, grandiloquente - mesmo quando assume laivos de filme de câmara (e com uma Marilyn onírica e não poucas vezes mostrada em surdina) -, psicanalítica e esteticamente ousada. É de destacar também a admirável (e impressiva) entrega da atriz Ana de Armas ao papel da mítica diva do cinema, assumindo-se de corpo e alma como Marilyn Monroe.

Ao invés de ter a pretensão de ser a biografia realista e fiel aos factos, Dominik opta pela encenação do arquétipo, começando pelo pesadelo (quase lynchiano) de uma infância trágica, passando pela representação da ingénua Norma Jean (nome verdadeiro da atriz mais icónica de Hollywood) no inferno machista dos castings nos grandes estúdios até à sua transfiguração na persona modelar e que acaba por se tornar (pelo menos, para a Norma representada em Blonde) um fardo insuportavelmente artificial. Domink reconstrói – e aí sim, de modo claramente mimético – algumas das fotografias mais célebres da atriz e cenas arquetípicas de alguns clássicos do cinema com Marilyn.

Convém não ir ao engano: Blonde não é para todos, e aqueles que procurarem no filme mais uma biografia realista ou um melodrama a glorificar a atriz, desengane-se. O filme transcende deliberadamente as convenções formais das fitas sobre uma figura histórica, tomando Marilyn (ou, se quisermos, a persona da atriz) como ponto de partida para uma reflexão sobre a Sétima Arte, no período do star system de Hollywood, como criadora de personas descartáveis e fabricante de sonhos tornados pesadelos freudianos.

Quanto a mim, Blonde é uma obra-prima.

sexta-feira, 14 de outubro de 2022

Paul Schrader (3) – “The Card Counter – O Jogador”

William Tell é um ex-militar com grande talento para o jogo de cartas, a que se dedica obsessivamente, de modo a manter o passado convenientemente recalcado. Em boa verdade, este jogador profissional, metódico e ritualista (cobre com lençóis brancos todos os móveis dos quartos de hotel onde fica hospedado) esteve muitos anos preso devido à cumplicidade nos crimes cometidos na prisão de Abu Ghraib durante a Segunda Guerra do Golfo. No entanto, as memórias desses anos ressurgem quando assiste a uma palestra de um antigo oficial responsável por treinar militares em técnicas de tortura.

Com The Card Counter regressámos ao cinema de autor daquele que é, porventura, a par de Woody Allen, um dos mais coerentes e intransigentes cineastas norte-americanos. Uma vez mais, Schrader cria uma obra pessoal, marcada por personagens trágicas em busca de redenção. Ora, para um intelectual tão marcado pela teologia cristã como Schrader só o sacrifício possibilita a redenção. Por isso, desde o argumento de Taxi Driver que este autor parece estar (quase) sempre a contar a mesma história – mas fá-lo sempre com ousadia e inconformismo.

William Tell (meticulosamente interpretado por Oscar Isaac) não é um sucedâneo de Travis Bickle (o icónico personagem imortalizado por Robert De Niro em Taxi Driver), embora com ele estabeleça pontos de contacto, senão vejamos: (i) são os dois ex-veteranos de duas guerras que, em tempos diferentes, mancharam a reputação libertária do exército norte-americano; (ii) sentem-se acossados pela participação numa guerra cujo propósito não compreenderam; (iii) vivem como presbíteros mundanos em busca da virtude. Todavia, William Tell, na sua aparente lucidez, está mais próximo de Ernest Toller, personagem central de No Coração da Escuridão, filme anterior de Schrader. Mas é tão-só isso: a (aparente) lucidez e – diria até – a formação intelectual de William Tell e Ernest Toller (Travis Bickle era demasiado autocentrado e indiferente à cultura académica). Porque, de resto, a loucura e a violência sacrificial mantêm-se à flor da pele.

quinta-feira, 13 de outubro de 2022

Contos de Silvina Ocampo (2) - "Os Dias da Noite"

A propósito dos contos de Silvina Ocampo, Jorge Luís Borges fez notar que, neles, há uma particularidade difícil de compreender, a saber: “o seu estranho amor por uma certa crueldade inocente ou oblíqua”. O incontornável autor argentino atribuía essa singularidade “ao interesse, o interesse atónito que o mal inspira numa alma nobre”.

Na verdade, tal como nos contos de Borges, tudo coabita no universo elegíaco de Silvina Ocampo: vidas enredadas na ficção, traições ardentes e vinganças geladas, espelhos ou sonhos que refletem fantasmas de carne e osso; o quotidiano banal que se faz mágico, fruto de agoiros e presságios, ora bons ora maus. A unir a maioria dos contos de Os Dias da Noite (editado em Portugal pela Livraria Snob) está sempre a infância, essa etapa dada ao fantástico, mas que Ocampo também vê como propensa para a crueldade. A infância como a fina fissura entre inocência e perversão.

A Fúria e outros contos e Os Dias da Noite constituem-se como leituras urgentes de uma escritora a (re)descobrir.

quarta-feira, 12 de outubro de 2022

Contos de Silvina Ocampo (1) – “A Fúria"

Escritora dotada de uma imaginação prodigiosa e de uma técnica narrativa singular, Silvina Ocampo é usualmente apontada como uma destacada rebelde das letras argentinas. Foi companheira de Adolfo Bioy Casares e amiga íntima de Jorge Luís Borges.

A Fúria e outros contos é, talvez, a sua obra-prima. Neste livro, editado em Portugal pela Antígona, reúnem-se trinta e quatro contos com narrativas plenas de notas de insólito, humor, drama, fantasia e terror, que reclamam leitura ávida e apuram o bom gosto literário.

terça-feira, 11 de outubro de 2022

Estado do Mundo (51) - Um Prémio Nobel num mundo desinteressado pela Paz


O Prémio Nobel da Paz de 2022 foi atribuído ao ativista bielorusso Ales Bialiatski e a duas organizações de direitos humanos - a russa Memorial e a ucraniana Center for Civil Liberties. O comunicado divulgado pelo Comité Nobel Norueguês sublinha que os vencedores "representam a sociedade civil nos seus países de origem".

Não deixa de ser um sinal dos tempos deveras preocupante o diminuto destaque que esta notícia mereceu nos principais órgãos de comunicação.

segunda-feira, 10 de outubro de 2022

Prémio Nobel da Literatura 2022


O Prémio Nobel da Literatura deste ano foi entregue à escritora francesa Annie Ernaux, "pela coragem e acuidade clínica com que ela põe a descoberto as raízes, alienações e constrangimentos coletivos da memória pessoal".

Quanto a mim, irei começar, em breve, a ler a obra "O Acontecimento", editada, este ano, em Portugal pela editora Livros do Brasil.

domingo, 9 de outubro de 2022

Estado da Nação (38) - Cinismo republicano


"O Presidente é a voz dos que não têm voz. A nós compete-nos o que não compete a mais ninguém, que é encontrar soluções para os problemas."

António Costa, 05 de outubro de 2022

sábado, 8 de outubro de 2022

Estado da Nação (37) - Pois, temos pena...

"O meu marido perdeu uma fortuna. Do ponto de vista económico, a minha passagem pelo Governo foi uma tragédia (...). Um ministro não ganha para o que faz. Há uma exposição pública tremenda que afeta o próprio e as famílias."

Francisca Van Dunem, Ex-ministra da Justiça, Expresso, 7 de outubro de 2022

sexta-feira, 7 de outubro de 2022

Mudar


Por vezes, sentimos que precisamos de recomeçar. Contudo, começar de novo implica estarmos dispostos a nos reinventarmos, a procurar outras soluções para velhos problemas. Se não tivermos ainda percebido que a natureza está em permanente devir (e Heraclito registou esta evidência, a partir da observação rigorosa, há mais de dois milénios), também não seremos capazes de mudar. O problema é que, quando menos esperamos, as circunstâncias requerem capacidade de adaptação e, caso não revelemos essa aptidão, se formos resistentes à mudança, estagnamos e tornamo-nos inflexíveis.

Ora, o recolhimento proporciona momentos de reflexão cuidada que sustentam as melhores escolhas que podemos fazer.

É bom lembrar as palavras de Curzio Malaparte no livro Kaputt: “Prefiro que seja necessário refazer tudo a ser obrigado a aceitar tudo como uma herança imutável”.

quinta-feira, 6 de outubro de 2022

Autonomia

 


Na sua autobiografia, Woody Allen confessa que a sua maior fobia é o medo de entrar. Convidado frequentemente a festas de gente ilustre (por vezes, políticos ou artistas que ele muito admirava) deixava-se ficar à porta a esforçar-se por superar o medo de entrar e ser forçado a estar presente, a ter que sorrir e socializar.

Na verdade, sempre vimos com melhores olhos pessoas populares e altamente sociáveis do que aquelas que preferem estar sós. Contudo, tal como Woody Allen, na maior parte das vezes, também eu “prefiro ficar no meu apartamento”. Por isso, há que conseguir dizê-lo alto e bom som; sabermos recusar o convite sem receio do que os outros possam pensar. Nesse aspeto, a personalidade daquele cineasta norte-americano é admirável, aliás, chegou a recusar prémios pela sua obra porque a condição para os receber seria ter que estar presente na cerimónia de entrega e recebê-los pessoalmente.

No início, pode custar, mas cedo nos habituaremos a decidir autonomamente, não cedendo a pressões ou a preocupações com aquilo que os outros irão pensar. Diz um conhecido aforismo que se é verdade que não posso controlar o que os outros pensam, posso controlar aquilo que penso.

quarta-feira, 5 de outubro de 2022

Correr

 


Há cerca de dez anos, redescobri um dos meus prazeres de infância: correr. A corrida (tal como a caminhada) é um exercício terapêutico: liberta toxinas, reequilibra mente e corpo, mas também proporciona momentos de introspeção, reflexão e balanço interior.

Correr regularmente reposiciona-nos perante o mundo, ajudando-nos a mitigar problemas e preocupações. Em boa verdade, correr produz efeitos semelhantes à meditação e, ainda que possamos treinar em grupo ou em equipa, os resultados são mais benéficos quando corremos sozinhos. Primeiro, porque exercitamos a motivação intrínseca (dependemos apenas de nós próprios para superarmos limites); segundo, porque definimos o nosso ritmo individual e as metas que pretendemos alcançar, tornando a prática mais livre e saudável; e, por último, porque desenvolvemos a capacidade para nos concentrarmos no silêncio, apurando o foco e depurando o pensamento.

Por isso, correr também é um ato solitário.

terça-feira, 4 de outubro de 2022

Detox

 


Na canção referida no capítulo anterior, Rui Veloso canta (…) e vale mais uma palavra / que mil imagens por minuto. Embora a música tenha sido composta na década de 90 do século XX, a letra está mais atual do que nunca.

De facto, vivemos, definitivamente, na era das imagens, aceleradas por redes sociais virtuais como o Instagram. Publicamos fotografias das férias de Verão em poses encenadas, dos aniversários dos filhos, da iguaria prestes a degustar à mesa do restaurante, enfim, um sem-número de atos quotidianos triviais que tornamos públicos, esbatendo a fronteira com a esfera privada. É a distopia Orwelliana materializada pela vontade individual (egocêntrica e acrítica, diria eu).

Mas não será esta aparente obsessão coletiva com as imagens uma máscara da solidão individual? Uma forma de nos iludirmos (e de iludirmos os outros) de que somos populares, bem-sucedidos e levamos a vida perfeita?

Tal banalização do quotidiano sobrepõe-se ao prazer espontâneo que outrora sentíamos naquilo que experienciávamos. Agora, há que registar tudo na câmara do smartphone e publicar as imagens, identificando devidamente o local.

Afinal, queremos ser permanentemente observados? E estamos a comunicar com quem? Com centenas, quando não milhares de amigos virtuais, muitos deles seguidores que nunca vimos fora do ecrã do telemóvel?

Há que redescobrir o prazer da fruição do instante, viver o momento apenas para vivê-lo e esquecer a pressão da foto, exercitando, desse modo, a memória afetiva.

Ao invés de querer encenar mais uma fotografia, experimente o prazer de apenas conversar com a pessoa que o/a acompanha. Ou, em alternativa, concentre-se no silêncio, na paz que o momento lhe transmite, na música que está a ouvir no concerto, no prato que está a saborear ou, simplesmente, limite-se a comungar com a Natureza. Vai ver que vale a pena!

segunda-feira, 3 de outubro de 2022

Lentidão

 


No mundo urbano do século XXI, tanto em países ricos como em países pobres, precisamos que tudo seja rápido, desde o nascer do dia até ao cair da noite. Pensemos sobre há quanto tempo não contemplamos a aurora ou o anoitecer com o devido vagar. E, a seguir, tomemos consciência do quanto isso nos faz falta. Será que a forma como vivemos corresponde ao modelo de vida que desejamos? Poderá a voragem dos dias proporcionar sentido para a existência?

A reflexão, seja sob a forma de introspeção ou de pura meditação, exige lentidão. O mesmo acontece com tudo aquilo que nos dá mais prazer: degustar um delicioso prato de comida, visitar um museu, ver um bom filme, ouvir um disco do princípio ao fim, amimar as pessoas que amamos, contemplar uma paisagem natural e até descansar. Tudo isto são prazeres superiores que nos fazem sentir vivos e dão propósito à existência. Ou, pelo menos, proporcionam encontros com sentido. Dito de outro modo: todas as experiências pessoais positivas contribuem para encontrar um sentido, uma orientação ao afirmarem-se como o Norte da nossa bússola interior.

Proponho ao leitor que faça uma pausa e ouça a canção Do meu vagar, composta por Rui Veloso e Carlos Tê. Atente na letra e, depois, reflita.

domingo, 2 de outubro de 2022

Educação e cultura

 


Um aspeto importante a ter em conta é o do papel da educação na forma como perspetivamos e até no modo como desejamos a solidão, o recolhimento interior. Sem educação (e aqui referimo-nos, sobretudo, à educação formal, institucional e académica) teremos dificuldade em compreender a relevância da solidão na busca pelo autoconhecimento, mas também para sabermos manter o foco e disciplinar a capacidade de concentração.

Por outro lado, sem sede de conhecimento, sem interesse pela cultura (tanto a baixa como a alta cultura, se quisermos adotar tal distinção elitista, mas, quanto a nós, são ambas igualmente importantes e o seu acesso deve ser justamente democratizado) não saberemos como desfrutar do tempo em tebaida, teremos até aversão à perspetiva de dedicarmos tempo a nós próprios, considerando-o inútil e o equivalente a um certo descaminho. Mas, também nesse caso, seremos incapazes de entender o valor de um livro (não o conseguiremos verdadeiramente ler, dada a concentração e o foco que a leitura exige), não poderemos desfruir da audição de um disco de John Coltrane, o êxtase proporcionado pela contemplação do Belo (por exemplo, um quadro de Vermeer) ser-nos-á inacessível, assim como será impossível perceber o puro prazer estético proporcionado pelo visionamento de um filme de Ingmar Bergman.

sábado, 1 de outubro de 2022

Autoconhecimento

 

Postulámos anteriormente que a solidão é condição indispensável para o autoconhecimento.

Frequentemente, evitamos o isolamento (no sentido de estarmos connosco próprios) porque tememos não gostar de nos confrontarmos com os nossos pensamentos. Talvez tenhamos algum receio daquilo que possamos descobrir. Mas quem somos nós realmente? Quem sou eu na verdade?

Por isso, enganamo-nos ao considerar que (o convívio com) os outros são condição suficiente (se não mesmo necessária) para a nossa felicidade. Procuramos sistematicamente estar com, buscamos o frenesi, ansiamos pelo bulício, apreciamos ruído e sentimo-nos desconfortáveis quando o silêncio se instala. Estes paraísos artificiais, ainda que importantes (em proporções moderadas) para o bem-estar individual, funcionam quase sempre como fugas (uma espécie de escapismo urbano-hedonista) mas (em doses desproporcionadas) são igualmente obstáculos à introspeção, à predisposição para a autoanálise.

Em boa verdade, a solidão (acompanhada pelo silêncio) é fundamental, na medida em que ela é o primeiro alicerce para a auto-observação que devemos aprender a cultivar.

sexta-feira, 30 de setembro de 2022

Porquê a solidão?


Retomemos o ponto de partida: há que saber aceitar a solidão como atitude de vida. Isto não significa que devemos votar os outros à solidão ou aceitar a frieza da indiferença (nossa e dos outros). Há, pois, também que clarificar o que não significa a solidão aqui enaltecida, de modo a podermos demarcar com rigor a solidão desejável e que se deve cultivar do sentido comummente aceite.

A solidão como forma de autoconhecimento e condição necessária para a felicidade não deve ser confundida com: (i) desprezo pelos outros nem como uma forma dissimulada de auto-depreciação, (ii) com insensibilidade pelo sofrimento alheio ou pelo isolamento que resulta daquela postura eticamente reprovável, (iii) com menosprezo ou egoísmo, (iv) e, muito menos, com misantropia.

A solidão que devemos ser capazes de desenvolver interiormente é aquela que predispõe para a contemplação da Beleza (seja uma paisagem natural seja uma obra de arte), para a prática anónima da solidariedade (o altruísmo genuíno dispensa a publicidade para o bem que se faz) e para o autoconhecimento que, por seu turno, enterreira para amar sem barreiras.

quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Consumismo

 

O consumismo é inimigo da solidão que desejamos, pois incrementa a solidão que não devemos alimentar. Esta última forma de solidão advém do desejo intenso de ter e diminui a vontade de ser.

Ficamos presos à ânsia de se possuir mais bens materiais e a uma ilusória sensação de felicidade. Claro que não podemos ser felizes se não formos livres! Mas poder consumir desenfreadamente não é condição necessária, muito menos suficiente, para a liberdade. Pelo contrário, apenas nos torna uma espécie de produto em série da sociedade de consumo.

Se o livre-arbítrio estiver dependente do poder de compra, pense: qual será a percentagem de pessoas felizes?

quarta-feira, 28 de setembro de 2022

Compreender a solidão

 

Há que perceber a solidão, analisá-la, capacitando-nos com uma dádiva que apela ao conhecimento interior. A solidão não está a mais nem a menos. Ela não se instala para cobrar o mal que fizemos, muito menos para nos consciencializarmos de que nos afastámos dos outros, nos desvinculámos da comunidade e que passámos, filauciosos, a viver para nós próprios ou a olhar para o nosso próprio umbigo.

Há que receber a solidão como uma dádiva, deixá-la entrar como se de um entrenervo se tratasse. Ela também faz parte do edifício interior que, ao longo da vida, vamos construindo, embora nem sempre nos apercebamos, já que ela vive no imo ande a alma habita.

terça-feira, 27 de setembro de 2022

"Às Coisas Que Nos Fazem Felizes" - de Gabrielle Muccino


Amarcord, de Federico Fellini, 1900, de Bernardo Bertolucci, Era Uma Vez Na América, de Sergio Leone, e Cinema Paraíso, de Giuseppe Tornatore, são exemplos maiores (e inolvidáveis) de épicos dramáticos assinados por realizadores que só por essas obras mereciam figurar na lista dos melhores cineastas do século XX. 

Com As Coisas Que Nos Fazem Felizes, Gabrielle Muccino cria um filme que, claramente, se insere nessa excelsa linhagem do cinema italiano. Neste filme acompanhamos a história de quatro amigos ao longo de outras tantas décadas. Começa em 1982 e termina já na presente década, pretexto para Muccino revisitar acontecimentos em Itália e no mundo ocidental que marcaram incontornavelmente a memória coletiva.

Que não restem dúvidas: esta é uma longa-metragem poética, comovente, herdeira digna do melhor cinema clássico italiano.

segunda-feira, 26 de setembro de 2022

"28 1/2" - Gentrificação e cursos sem profissão, segundo Adriano Mendes


Há pouca informação disponível sobre esta longa-metragem de Adriano Mendes, mas o filme recomenda-se.

28 1/2 é uma pequena pérola para compreender certos problemas sociológicos que têm marcado as primeiras décadas do século XXI, nomeadamente a questão dos cursos superiores que, embora homologados e já com inúmeros licenciados, não encontram o reconhecimento da profissão no mercado de trabalho. Por outro lado, a longa sequência final, em que Adriano Mendes filma uma conversa num jantar de amigos, discute o problema da gentrificação na cidade de Lisboa que, literalmente, expulsa os lisboetas (ou muitos dos que lá querem trabalhar) para zonas periféricas marcadas pela exclusão social. 

A película, escrita e realizada com vontade e rigor,  marcará, com certeza, o ano cinematográfico português. Pena é ter sido ignorada pelo público e pela imprensa. 28 1/2 merecia a devida divulgação e visionamento.

domingo, 25 de setembro de 2022

"A Lança em Chamas" (1960) e "Telefone" (1978) - dois filmes menores de Don Siegel


Clint Eastwood homenageou Don Siegel (e Sergio Leone) no memorável western Imperdoável (1992). Tinha boas razões para tão respeitável gesto: Siegel foi (com Leone) tão somente o realizador que desenhou a imagem de marca de Eastwood (sobretudo, em Dirty Harry) e relançou a sua carreira já após os 40 anos de idade.

Embora seja um nome incontornável do cinema de ação, Siegel tem, na sua longa filmografia, alguns títulos menores, como, por exemplo, os dois que aqui se registam, curiosamente, veículos para os seus protagonistas. 

A Lança em Chamas é um western produzido no auge da fama de Elvis Presley, filmado com o rigor clássico dos grandes artesãos de Hollywood; é também um dos últimos filmes do período de ouro do género cinematográfico americano mais icónico.

Telefone é um thriller político típico dos anos da Guerra Fria, com Charles Bronson (na altura, talvez o ator mais popular da série B) no papel de um agente do KGB responsável por cumprir uma missão de risco nos EUA - eliminar um perigoso agente soviético que decidiu levar a cabo um ato terrorista, entretanto descontinuado pelo Kremlin. O filme arrasta-se num ritmo lento e penoso, desafiando continuamente os limites da paciência do espectador. Salva-se Lee Remick no papel de agente infiltrada do KGB em solo americano, parceira de missão de um Charles Bronson que nunca consegue estar à altura daquela diva do cinema clássico. 

sexta-feira, 23 de setembro de 2022

"Foxy Brown" - icónica Pam Grier


Foxy Brown é a personagem mais icónica dos blaxploitation movies. Realizado por Jack Hill, em 1974, é uma pequeníssima produção, com um argumento trapalhão e um punhado de maus atores, de onde sobressai uma enorme atriz. Em boa verdade, sempre que Pam Grier está em cena (na pele da heroína do título) o filme eleva-se do seu estatuto de menoridade, justificando a permanência da fita para além da iconoclasta década em que foi produzido.

Paradigma de um género que desapareceu (aqui e ali homenageado por cineastas superiores, como Spike Lee ou Quentin Tarantino), tem algumas cenas tão más que se tornam muito boas. A começar na sequência noturna de abertura, com um gângster gingão a tentar proteger-se de outros facínoras, passando pelo sangue que escorre das vítimas como tinta de aguarela.

Vinte e três anos mais tarde, Tarantino iria homenagear esta película, oferecendo, finalmente, a Pam Grier o filme que a atriz merecia. Chamar-se-ia Jackie Brown e é, para este escriba, a obra-prima de Quentin Tarantino.

quarta-feira, 21 de setembro de 2022

"A Cidade Turbulenta" - de George Marshall


A Cidade Turbulenta (no original, Destry Rides Again) é um dos westerns clássicos produzidos na década de 30 do século XX (o filme é de 1939), assinado por um brilhante artesão, George Marshall, e protagonizado pela versátil Marlene Dietrich, pelo sempre gentil James Stewart e por um vilão exemplar, o saudoso Brian Donlevy. Além de ser um filme de ação, é um objeto divertidíssimo (para o qual contribui - e muito - o chistoso Charles Winninger).

O xerife de uma pequena cidade é morto por um bandido que pretende controlar os rancheiros de gado da região. Rapidamente, o Mayor corrupto daquela povoação nomeia para novo xerife o ébrio mais popular do saloon local; mas este, contra todas as expectativas, assume o cargo com sentido de responsabilidade, recupera a sobriedade e contrata o filho de um antigo xerife e herói local, Tom Destry Jr., que, sob o manto de uma aparente ingenuidade, irá repor a ordem na cidade e combater a corrupção.

George Marshall foi um dos fundadores da linguagem cinematográfica como hoje a conhecemos. Realizou cerca de uma centena de filmes, desde a década de 20 (ainda nos tempos do cinema mudo) até ao término da década de 60. Merece ser redescoberto e A Cidade Turbulenta é um bom ponto de partida.

terça-feira, 20 de setembro de 2022

"Cassandra Crossing" - de George P. Cosmatos


A década de 70 do século XX foi pródiga na criação de um subgénero de filmes conhecido como filmes-catástrofe.

Cassandra Crossing, película de 1976 realizada por George P. Cosmatos (sim, o mesmo que assinou, em 1985, o execrável Rambo II: A Vingança do Herói), marcou o apogeu dessa categoria ao filmar a história de um terrorista contaminado com um vírus letal, que se esconde num comboio na estação de Genebra. O comboio acaba por ser lacrado e forçado a mudar de rota, com o propósito de colocar os passageiros em quarentena num antigo campo de concentração nazi.

Com um elenco repleto de vedetas (como era característico dos filmes-catástrofe), que inclui a participação do icónico professor de teatro Lee Strasberg, fundador do Actors Studio, realização segura e fotografado num esplendoroso tecnicolor, Cassandra Crossing envelheceu bem e continua a proporcionar cerca de duas horas de entretenimento inteligente e estranhamente atual. 



segunda-feira, 19 de setembro de 2022

"O Embaixador" - de J. Lee Thompson


J. Lee Thompson era já um realizador veterano quando assinou esta exortação pela paz no Médio Oriente, em particular em prol do diálogo entre israelitas e palestinianos.

O Embaixador, obra de 1984, é, talvez, o objeto fílmico mais explícito no seu propósito apologético do entendimento entre judeus e muçulmanos moderados como forma de unirem esforços contra os extremismos dos dois lados do conflito israelo-palestiniano. É certo que também se trata de um filme de ação, género no qual J. Lee Thompson sempre foi um mestre, mesmo quando tinha um orçamento muito aquém da ambição da obra (veja-se a cena de abertura, de cortar a respiração).

O Embaixador é um filme com um grande elenco: Robert Mitchum (no papel de um embaixador pacifista), Ellen Burstyn (numa exuberante meia-idade, mais bonita do que nunca) e Rock Hudson (naquele que foi o seu último filme, ainda imponente e em boa forma).

Há quanto tempo não se fazem longas-metragens assim, com objetivos comerciais, diretos ao osso, noventa minutos feéricos, mensagem política e filosófica que respeita a inteligência do espectador? 

sábado, 17 de setembro de 2022

Estado da Nação (36) - O Portugal de Costa, Família e Amigos no top ten... da pobreza


A pandemia fez subir para 2,3 milhões os portugueses em risco de pobreza ou exclusão social, o equivalente a 22,4% da população. Entretanto, os dados divulgados ontem pelo Eurostat confirmam este agravamento, indo até mais longe: mostram que Portugal passou a ser o oitavo pior da União Europeia na lista de países com maior risco de pobreza ou exclusão social em 2021.

Convém não esquecer, no entanto, que este é o país que, no início deste ano, quis dar ao PS maioria absoluta para (des)governar. 

sábado, 8 de janeiro de 2022

Os 10 melhores filmes de 2021

Antes de mais, importa expor uma breve declaração de intenções: os dez filmes que escolhi como os melhores de 2021 incluem uma obra que, já tendo mais de três décadas, só agora foi exibida comercialmente em Portugal. Refiro-me ao opus 1 de Wong Kar Wai, "Ao Sabor da Ambição". 

São dez filmes que demonstram que o importante na Arte (em toda a Arte, não apenas na Sétima) é a procura da Beleza e da Verdade - os dois critérios estéticos e éticos que ainda servem de bússola ao grande cinema. Como todas as listas, a minha também é subjetiva, mas quem não viu um ou mais dos filmes que nomearei a seguir, aconselho vivamente que o faça. Há Beleza e Verdade por aqui. E há, sobretudo, grande Cinema.

1. "Titane" - de Julia Ducournau

2. "A Metamorfose dos Pássaros" - de Catarina Vasconcelos

3. "Diários de Otsoga" - de Maureen Fazendeiro e Miguel Gomes 

4. "Identidade" - de Rebecca Hall

5. "Licorice Pizza" - de Paul Thomas Anderson

6. "The Card Counter" - de Paul Schrader

7.  "Ao Sabor da Ambição" - de Wong Kar Wai

8. "O Discípulo" - de Chaitanya Tamhane

9. "O Pai" - de Florian Zeller

10. "Rifkin's Festival" - de Woody Allen

Breves notas sobre o cinema de Wong Kar Wai (6) - "Disponível Para Amar" (2000)

E, no ano da graça de 2000, Wong Kar Wai alcançou o zénite da sua (sétima) arte com a obra-prima Disponível Para Amar . É (mais) uma históri...