Na semana em que iremos passar à hora de inverno, e em pleno mês de outubro, nada como escutarmos um disco pensado, precisamente, como banda sonora para o outono. Trata-se de música de câmara com harmonias eletrónicas que traduzem a imagética desta estação do ano em paisagens sonoras executadas com a mestria própria de dois compositores gigantes, oriundos do rock progressivo e da música clássica. October Is Marigold deve ser fruído do princípio ao fim.
Ideias, opiniões, gostos, prazeres, fruições, sensibilidades e rotinas serão aqui registadas.
terça-feira, 25 de outubro de 2022
domingo, 23 de outubro de 2022
Banda sonora para o Outono (41) - a-ha: "True North"
Uma dezena de álbuns de originais depois, o grupo norueguês continua em boa forma, tendo lançado esta semana um disco orquestral, pleno de canções compostas com o cuidado e o rigor próprios da maturidade que os quarenta anos de experiência musical tornam possível. Convém sublinhar que True North (assim se chama o LP) é um disco pop, sim, mas contra a corrente, avesso a modas ou a sonoridades mais modernas, optando por harmonias intemporais, muito graças à colaboração com a Orquestra Filarmónica do Árctico.
Carta de amor à natureza, True North é uma obra maior do que a soma das suas partes. Um dos discos do ano - vale a pena ouvi-lo do princípio ao fim.
segunda-feira, 17 de outubro de 2022
“Uma Paixão Simples” – Annie Ernaux (1) por Danielle Arbid
Para
muitos, Annie Ernaux talvez seja maior descoberta literária de 2022. No entanto,
apesar da postura discreta, a escritora já há muito que é, sobretudo em França,
um nome prestigiado das letras. A sua obra é pioneira num registo que vem sendo
designado como autoficção, embora na entrevista que deu ao Expresso
(publicada na edição do último fim de semana) a autora considere mais ajustado
o termo cru e direto ao osso – biografia.
Um
dos seus livros mais conhecidos é, precisamente, Uma Paixão Simples (editada em Portugal pela Livros do Brasil),
que, em 2020, foi adaptado ao grande ecrã por Danielle Arbid, tendo obtido a
honra de integrar a seleção oficial de Festival de Cannes desse ano.
Se
quisermos identificar um bom exemplo de narrativas que, em mãos capazes,
funcionam da melhor forma em livro mas não em cinema, Uma Paixão Simples
será uma escolha adequada.
Conta
a história de uma professora universitária que se envolve romanticamente com um
enigmático diplomata russo (e, já agora, fervoroso admirador de Putin).
Imagino
que um mestre como Wong Kar Wai faria de tal material narrativo (que, como o
título indica, é bem simples) um grande melodrama, mas não é o cineasta de
Hong Kong quem quer. Por isso, enquanto cinéfilos, ficaremos infinitamente
melhor servidos revendo a obra seminal de Kar Wai, Disponível Para Amar.
Uma
nota positiva para o bom trabalho dos atores e para a excelente banda sonora. Contudo,
estes são pormenores que não bastam para salvar o filme do imenso vazio a que
se entrega.
domingo, 16 de outubro de 2022
Estado da Nação (39) - Um Governo a governar-se a si próprio
Pedro Nuno Santos, ministro das Infraestruturas e da Habitação (e putativo futuro primeiro-ministro), atribuiu dinheiros públicos a uma empresa da sua família.
Manuel Pizarro, ministro da Saúde, é casado com a bastonária da Ordem dos Nutricionistas e, até há uns dias, detinha uma empresa na área da Saúde.
Ana Abrunhosa, ministra da Coesão Territorial, concedeu milhares de euros em fundos europeus a duas empresas do marido.
É a maioria socialista a reforçar que este é mesmo o País rosa.
sábado, 15 de outubro de 2022
"Blonde" - Marilyn por Andrew Dominik
Adaptação
do romance (inspirado na vida de Marilyn Monroe) de Joyce Carrol Oates com o
mesmo título, Blonde é, por enquanto, o acontecimento cinematográfico do
ano. É verdade que o filme de Andrew Dominik, estreado no Festival de Cinema de
Veneza de 2022, foi produzido (e diretamente disponibilizado) pela plataforma
Netflix, quando merecia visionamento no grande ecrã, mas é de Cinema que
estamos a falar.
O
filme não pretende ser um biopic, embora os espetadores mais incautos
possam vê-lo enquanto tal. É antes uma adaptação tão fiel quanto possível de um
romance com o epíteto de inadaptável.
Blonde é uma obra barroca, grandiloquente - mesmo
quando assume laivos de filme de câmara (e com uma Marilyn onírica e não poucas
vezes mostrada em surdina) -, psicanalítica e esteticamente ousada. É de
destacar também a admirável (e impressiva) entrega da atriz Ana de Armas
ao papel da mítica diva do cinema, assumindo-se de corpo e alma como Marilyn
Monroe.
Ao
invés de ter a pretensão de ser a biografia realista e fiel aos factos,
Dominik opta pela encenação do arquétipo, começando pelo pesadelo (quase
lynchiano) de uma infância trágica, passando pela representação da ingénua
Norma Jean (nome verdadeiro da atriz mais icónica de Hollywood) no inferno
machista dos castings nos grandes estúdios até à sua transfiguração na persona
modelar e que acaba por se tornar (pelo menos, para a Norma representada em Blonde)
um fardo insuportavelmente artificial. Domink reconstrói – e aí sim, de modo
claramente mimético – algumas das fotografias mais célebres da atriz e cenas
arquetípicas de alguns clássicos do cinema com Marilyn.
Convém
não ir ao engano: Blonde não é para todos, e aqueles que procurarem no
filme mais uma biografia realista ou um melodrama a glorificar a atriz, desengane-se.
O filme transcende deliberadamente as convenções formais das fitas sobre uma
figura histórica, tomando Marilyn (ou, se quisermos, a persona da atriz)
como ponto de partida para uma reflexão sobre a Sétima Arte, no
período do star system de Hollywood, como criadora de personas
descartáveis e fabricante de sonhos tornados pesadelos freudianos.
Quanto
a mim, Blonde é uma obra-prima.
sexta-feira, 14 de outubro de 2022
Paul Schrader (3) – “The Card Counter – O Jogador”
William
Tell é um ex-militar com grande talento para o jogo de cartas, a que se dedica
obsessivamente, de modo a manter o passado convenientemente recalcado. Em boa
verdade, este jogador profissional, metódico e ritualista (cobre com lençóis
brancos todos os móveis dos quartos de hotel onde fica hospedado) esteve muitos
anos preso devido à cumplicidade nos crimes cometidos na prisão de Abu Ghraib
durante a Segunda Guerra do Golfo. No entanto, as memórias desses anos
ressurgem quando assiste a uma palestra de um antigo oficial responsável por
treinar militares em técnicas de tortura.
Com
The Card Counter regressámos ao cinema de autor daquele que é,
porventura, a par de Woody Allen, um dos mais coerentes e intransigentes
cineastas norte-americanos. Uma vez mais, Schrader cria uma obra pessoal,
marcada por personagens trágicas em busca de redenção. Ora, para um
intelectual tão marcado pela teologia cristã como Schrader só o sacrifício
possibilita a redenção. Por isso, desde o argumento de Taxi Driver que
este autor parece estar (quase) sempre a contar a mesma história – mas fá-lo
sempre com ousadia e inconformismo.
William
Tell (meticulosamente interpretado por Oscar Isaac) não é um sucedâneo de
Travis Bickle (o icónico personagem imortalizado por Robert De Niro em Taxi
Driver), embora com ele estabeleça pontos de contacto, senão vejamos: (i)
são os dois ex-veteranos de duas guerras que, em tempos diferentes, mancharam a
reputação libertária do exército norte-americano; (ii) sentem-se acossados pela
participação numa guerra cujo propósito não compreenderam; (iii) vivem como
presbíteros mundanos em busca da virtude. Todavia, William Tell, na sua
aparente lucidez, está mais próximo de Ernest Toller, personagem central de No
Coração da Escuridão, filme anterior de Schrader. Mas é tão-só isso: a
(aparente) lucidez e – diria até – a formação intelectual de William Tell e
Ernest Toller (Travis Bickle era demasiado autocentrado e indiferente à cultura
académica). Porque, de resto, a loucura e a violência sacrificial mantêm-se à
flor da pele.
quinta-feira, 13 de outubro de 2022
Contos de Silvina Ocampo (2) - "Os Dias da Noite"
A
propósito dos contos de Silvina Ocampo, Jorge Luís Borges fez notar que, neles,
há uma particularidade difícil de compreender, a saber: “o seu estranho amor
por uma certa crueldade inocente ou oblíqua”. O incontornável autor argentino
atribuía essa singularidade “ao interesse, o interesse atónito que o mal
inspira numa alma nobre”.
Na
verdade, tal como nos contos de Borges, tudo coabita no universo elegíaco de
Silvina Ocampo: vidas enredadas na ficção, traições ardentes e vinganças
geladas, espelhos ou sonhos que refletem fantasmas de carne e osso; o quotidiano
banal que se faz mágico, fruto de agoiros e presságios, ora bons ora maus. A unir
a maioria dos contos de Os Dias da Noite (editado em Portugal pela
Livraria Snob) está sempre a infância, essa etapa dada ao fantástico, mas que
Ocampo também vê como propensa para a crueldade. A infância como a fina fissura
entre inocência e perversão.
A
Fúria e outros contos e Os Dias da
Noite constituem-se como leituras urgentes de uma escritora a
(re)descobrir.
quarta-feira, 12 de outubro de 2022
Contos de Silvina Ocampo (1) – “A Fúria"
Escritora
dotada de uma imaginação prodigiosa e de uma técnica narrativa singular,
Silvina Ocampo é usualmente apontada como uma destacada rebelde das letras
argentinas. Foi companheira de Adolfo Bioy Casares e amiga íntima de Jorge Luís
Borges.
A
Fúria e outros contos é, talvez, a sua
obra-prima. Neste livro, editado em Portugal pela Antígona,
reúnem-se trinta e quatro contos com narrativas plenas de notas de insólito,
humor, drama, fantasia e terror, que reclamam leitura ávida e apuram o bom
gosto literário.
terça-feira, 11 de outubro de 2022
Estado do Mundo (51) - Um Prémio Nobel num mundo desinteressado pela Paz
segunda-feira, 10 de outubro de 2022
Prémio Nobel da Literatura 2022
Quanto a mim, irei começar, em breve, a ler a obra "O Acontecimento", editada, este ano, em Portugal pela editora Livros do Brasil.
domingo, 9 de outubro de 2022
Estado da Nação (38) - Cinismo republicano
António Costa, 05 de outubro de 2022
sábado, 8 de outubro de 2022
Estado da Nação (37) - Pois, temos pena...
"O meu marido perdeu uma fortuna. Do ponto de vista económico, a minha passagem pelo Governo foi uma tragédia (...). Um ministro não ganha para o que faz. Há uma exposição pública tremenda que afeta o próprio e as famílias."
Francisca Van Dunem, Ex-ministra da Justiça, Expresso, 7 de outubro de 2022
sexta-feira, 7 de outubro de 2022
Mudar
quinta-feira, 6 de outubro de 2022
Autonomia
Na sua autobiografia,
Woody Allen confessa que a sua maior fobia é o medo de entrar. Convidado frequentemente a festas de gente ilustre (por
vezes, políticos ou artistas que ele muito admirava) deixava-se ficar à porta a
esforçar-se por superar o medo de entrar
e ser forçado a estar presente, a ter que sorrir e socializar.
Na verdade, sempre vimos com melhores olhos
pessoas populares e altamente sociáveis do que aquelas que preferem estar sós. Contudo,
tal como Woody Allen, na maior parte das vezes, também eu “prefiro ficar no meu
apartamento”. Por isso, há que conseguir dizê-lo alto e bom som; sabermos recusar o convite sem receio do que os outros
possam pensar. Nesse aspeto, a personalidade daquele cineasta norte-americano é
admirável, aliás, chegou a recusar prémios pela sua obra porque a condição para
os receber seria ter que estar presente na cerimónia de entrega e recebê-los pessoalmente.
No início, pode custar, mas cedo nos habituaremos
a decidir autonomamente, não cedendo a pressões ou a preocupações com aquilo que
os outros irão pensar. Diz um conhecido aforismo que se é verdade que não posso controlar o que os outros pensam, posso controlar
aquilo que penso.
quarta-feira, 5 de outubro de 2022
Correr
Há cerca de dez anos, redescobri um dos meus prazeres de infância: correr. A corrida (tal como a caminhada) é um exercício terapêutico: liberta toxinas, reequilibra mente e corpo, mas também proporciona momentos de introspeção, reflexão e balanço interior.
Correr regularmente reposiciona-nos perante o mundo, ajudando-nos a mitigar problemas e preocupações. Em boa verdade, correr produz efeitos semelhantes à meditação e, ainda que possamos treinar em grupo ou em equipa, os resultados são mais benéficos quando corremos sozinhos. Primeiro, porque exercitamos a motivação intrínseca (dependemos apenas de nós próprios para superarmos limites); segundo, porque definimos o nosso ritmo individual e as metas que pretendemos alcançar, tornando a prática mais livre e saudável; e, por último, porque desenvolvemos a capacidade para nos concentrarmos no silêncio, apurando o foco e depurando o pensamento.
Por isso, correr também é um ato solitário.
terça-feira, 4 de outubro de 2022
Detox
Na canção
referida no capítulo anterior, Rui Veloso canta (…) e vale mais uma palavra / que mil imagens por minuto. Embora a
música tenha sido composta na década de 90 do século XX, a letra está mais
atual do que nunca.
De facto, vivemos, definitivamente, na era
das imagens, aceleradas por redes sociais virtuais como o Instagram. Publicamos
fotografias das férias de Verão em poses encenadas, dos aniversários dos
filhos, da iguaria prestes a degustar à mesa do restaurante, enfim, um
sem-número de atos quotidianos triviais que tornamos públicos, esbatendo a
fronteira com a esfera privada. É a distopia Orwelliana materializada pela
vontade individual (egocêntrica e acrítica, diria eu).
Mas não será esta aparente obsessão
coletiva com as imagens uma máscara da solidão individual? Uma forma de nos
iludirmos (e de iludirmos os outros) de que somos populares, bem-sucedidos e
levamos a vida perfeita?
Tal banalização do quotidiano sobrepõe-se
ao prazer espontâneo que outrora sentíamos naquilo que experienciávamos. Agora,
há que registar tudo na câmara do smartphone e publicar as imagens,
identificando devidamente o local.
Afinal, queremos ser permanentemente
observados? E estamos a comunicar com quem? Com centenas, quando não milhares
de amigos virtuais, muitos deles seguidores que nunca vimos fora do ecrã do
telemóvel?
Há que redescobrir o prazer da fruição do
instante, viver o momento apenas para vivê-lo
e esquecer a pressão da foto, exercitando, desse modo, a memória afetiva.
Ao invés de querer encenar mais uma
fotografia, experimente o prazer de apenas
conversar com a pessoa que o/a acompanha. Ou, em alternativa, concentre-se
no silêncio, na paz que o momento lhe transmite, na música que está a ouvir no
concerto, no prato que está a saborear ou, simplesmente, limite-se a comungar com
a Natureza. Vai ver que vale a pena!
segunda-feira, 3 de outubro de 2022
Lentidão
No mundo urbano
do século XXI, tanto em países ricos como em países pobres, precisamos que tudo
seja rápido, desde o nascer do dia até ao cair da noite. Pensemos sobre há quanto
tempo não contemplamos a aurora ou o anoitecer com o devido vagar. E, a seguir,
tomemos consciência do quanto isso nos faz falta. Será que a forma como vivemos
corresponde ao modelo de vida que desejamos? Poderá a voragem dos dias proporcionar
sentido para a existência?
A reflexão, seja sob a forma de introspeção ou de pura meditação, exige lentidão. O mesmo acontece com tudo aquilo que nos dá mais prazer: degustar um delicioso prato de comida, visitar um museu, ver um bom filme, ouvir um disco do princípio ao fim, amimar as pessoas que amamos, contemplar uma paisagem natural e até descansar. Tudo isto são prazeres superiores que nos fazem sentir vivos e dão propósito à existência. Ou, pelo menos, proporcionam encontros com sentido. Dito de outro modo: todas as experiências pessoais positivas contribuem para encontrar um sentido, uma orientação ao afirmarem-se como o Norte da nossa bússola interior.
Proponho ao leitor que faça uma pausa e ouça a canção Do meu vagar, composta por Rui Veloso e Carlos Tê. Atente na letra e, depois, reflita.
domingo, 2 de outubro de 2022
Educação e cultura
Um aspeto
importante a ter em conta é o do papel da educação na forma como perspetivamos
e até no modo como desejamos a solidão, o recolhimento interior. Sem educação
(e aqui referimo-nos, sobretudo, à educação formal, institucional e académica)
teremos dificuldade em compreender a relevância da solidão na busca pelo autoconhecimento,
mas também para sabermos manter o foco e disciplinar a capacidade de
concentração.
Por outro lado, sem sede de conhecimento,
sem interesse pela cultura (tanto a baixa
como a alta cultura, se quisermos
adotar tal distinção elitista, mas, quanto a nós, são ambas igualmente
importantes e o seu acesso deve ser justamente democratizado) não saberemos
como desfrutar do tempo em tebaida, teremos até aversão à perspetiva de
dedicarmos tempo a nós próprios, considerando-o inútil e o equivalente a um certo
descaminho. Mas, também nesse caso, seremos incapazes de entender o valor de um
livro (não o conseguiremos verdadeiramente ler, dada a concentração e o foco
que a leitura exige), não poderemos desfruir da audição de um disco de John
Coltrane, o êxtase proporcionado pela contemplação do Belo (por exemplo, um
quadro de Vermeer) ser-nos-á inacessível, assim como será impossível perceber o
puro prazer estético proporcionado pelo visionamento de um filme de Ingmar
Bergman.
sábado, 1 de outubro de 2022
Autoconhecimento
Postulámos anteriormente
que a solidão é condição indispensável para o autoconhecimento.
Frequentemente, evitamos o isolamento (no sentido
de estarmos connosco próprios) porque tememos não gostar de nos confrontarmos com
os nossos pensamentos. Talvez tenhamos algum receio daquilo que possamos descobrir.
Mas quem somos nós realmente? Quem sou eu
na verdade?
Por isso, enganamo-nos ao considerar que (o
convívio com) os outros são condição suficiente (se não mesmo necessária) para a
nossa felicidade. Procuramos sistematicamente estar com, buscamos o frenesi, ansiamos pelo bulício, apreciamos ruído
e sentimo-nos desconfortáveis quando o silêncio se instala. Estes paraísos artificiais,
ainda que importantes (em proporções moderadas) para o bem-estar individual, funcionam
quase sempre como fugas (uma espécie de escapismo urbano-hedonista) mas (em doses
desproporcionadas) são igualmente obstáculos à introspeção, à predisposição para
a autoanálise.
Em boa verdade, a solidão (acompanhada pelo
silêncio) é fundamental, na medida em que ela é o primeiro alicerce para a auto-observação
que devemos aprender a cultivar.
sexta-feira, 30 de setembro de 2022
Porquê a solidão?
Retomemos o
ponto de partida: há que saber aceitar a solidão como atitude de vida. Isto não
significa que devemos votar os outros à solidão ou aceitar a frieza da
indiferença (nossa e dos outros). Há, pois, também que clarificar o que não significa a solidão aqui
enaltecida, de modo a podermos demarcar com rigor a solidão desejável e que se
deve cultivar do sentido comummente aceite.
A solidão como forma de autoconhecimento e
condição necessária para a felicidade não deve ser confundida com: (i) desprezo
pelos outros nem como uma forma dissimulada de auto-depreciação, (ii) com
insensibilidade pelo sofrimento alheio ou pelo isolamento que resulta daquela
postura eticamente reprovável, (iii) com menosprezo ou egoísmo, (iv) e, muito
menos, com misantropia.
A solidão que devemos ser capazes de
desenvolver interiormente é aquela que predispõe para a contemplação da Beleza (seja
uma paisagem natural seja uma obra de arte), para a prática anónima da
solidariedade (o altruísmo genuíno dispensa a publicidade para o bem que se
faz) e para o autoconhecimento que, por seu turno, enterreira para amar sem barreiras.
quinta-feira, 29 de setembro de 2022
Consumismo
O
consumismo é inimigo da solidão que desejamos, pois incrementa a solidão que
não devemos alimentar. Esta última forma de solidão advém do desejo intenso de ter e diminui a vontade de ser.
Ficamos presos à ânsia de se possuir mais
bens materiais e a uma ilusória sensação de felicidade. Claro que não podemos
ser felizes se não formos livres! Mas poder consumir desenfreadamente não é
condição necessária, muito menos suficiente, para a liberdade. Pelo contrário,
apenas nos torna uma espécie de produto em série da sociedade de consumo.
Se o livre-arbítrio estiver dependente do
poder de compra, pense: qual será a
percentagem de pessoas felizes?
quarta-feira, 28 de setembro de 2022
Compreender a solidão
Há que
perceber a solidão, analisá-la, capacitando-nos com uma dádiva que apela ao
conhecimento interior. A solidão não está a mais nem a menos. Ela não se
instala para cobrar o mal que fizemos, muito menos para nos consciencializarmos
de que nos afastámos dos outros, nos desvinculámos da comunidade e que
passámos, filauciosos, a viver para nós próprios ou a olhar para o nosso
próprio umbigo.
Há que receber a solidão como uma dádiva,
deixá-la entrar como se de um entrenervo se tratasse. Ela também faz parte do
edifício interior que, ao longo da vida, vamos construindo, embora nem sempre
nos apercebamos, já que ela vive no imo ande a alma habita.
terça-feira, 27 de setembro de 2022
"Às Coisas Que Nos Fazem Felizes" - de Gabrielle Muccino
Com As Coisas Que Nos Fazem Felizes, Gabrielle Muccino cria um filme que, claramente, se insere nessa excelsa linhagem do cinema italiano. Neste filme acompanhamos a história de quatro amigos ao longo de outras tantas décadas. Começa em 1982 e termina já na presente década, pretexto para Muccino revisitar acontecimentos em Itália e no mundo ocidental que marcaram incontornavelmente a memória coletiva.
Que não restem dúvidas: esta é uma longa-metragem poética, comovente, herdeira digna do melhor cinema clássico italiano.
segunda-feira, 26 de setembro de 2022
"28 1/2" - Gentrificação e cursos sem profissão, segundo Adriano Mendes
28 1/2 é uma pequena pérola para compreender certos problemas sociológicos que têm marcado as primeiras décadas do século XXI, nomeadamente a questão dos cursos superiores que, embora homologados e já com inúmeros licenciados, não encontram o reconhecimento da profissão no mercado de trabalho. Por outro lado, a longa sequência final, em que Adriano Mendes filma uma conversa num jantar de amigos, discute o problema da gentrificação na cidade de Lisboa que, literalmente, expulsa os lisboetas (ou muitos dos que lá querem trabalhar) para zonas periféricas marcadas pela exclusão social.
A película, escrita e realizada com vontade e rigor, marcará, com certeza, o ano cinematográfico português. Pena é ter sido ignorada pelo público e pela imprensa. 28 1/2 merecia a devida divulgação e visionamento.
domingo, 25 de setembro de 2022
"A Lança em Chamas" (1960) e "Telefone" (1978) - dois filmes menores de Don Siegel
Embora seja um nome incontornável do cinema de ação, Siegel tem, na sua longa filmografia, alguns títulos menores, como, por exemplo, os dois que aqui se registam, curiosamente, veículos para os seus protagonistas.
A Lança em Chamas é um western produzido no auge da fama de Elvis Presley, filmado com o rigor clássico dos grandes artesãos de Hollywood; é também um dos últimos filmes do período de ouro do género cinematográfico americano mais icónico.
Telefone é um thriller político típico dos anos da Guerra Fria, com Charles Bronson (na altura, talvez o ator mais popular da série B) no papel de um agente do KGB responsável por cumprir uma missão de risco nos EUA - eliminar um perigoso agente soviético que decidiu levar a cabo um ato terrorista, entretanto descontinuado pelo Kremlin. O filme arrasta-se num ritmo lento e penoso, desafiando continuamente os limites da paciência do espectador. Salva-se Lee Remick no papel de agente infiltrada do KGB em solo americano, parceira de missão de um Charles Bronson que nunca consegue estar à altura daquela diva do cinema clássico.
sexta-feira, 23 de setembro de 2022
"Foxy Brown" - icónica Pam Grier
Paradigma de um género que desapareceu (aqui e ali homenageado por cineastas superiores, como Spike Lee ou Quentin Tarantino), tem algumas cenas tão más que se tornam muito boas. A começar na sequência noturna de abertura, com um gângster gingão a tentar proteger-se de outros facínoras, passando pelo sangue que escorre das vítimas como tinta de aguarela.
Vinte e três anos mais tarde, Tarantino iria homenagear esta película, oferecendo, finalmente, a Pam Grier o filme que a atriz merecia. Chamar-se-ia Jackie Brown e é, para este escriba, a obra-prima de Quentin Tarantino.
quarta-feira, 21 de setembro de 2022
"A Cidade Turbulenta" - de George Marshall
O xerife de uma pequena cidade é morto por um bandido que pretende controlar os rancheiros de gado da região. Rapidamente, o Mayor corrupto daquela povoação nomeia para novo xerife o ébrio mais popular do saloon local; mas este, contra todas as expectativas, assume o cargo com sentido de responsabilidade, recupera a sobriedade e contrata o filho de um antigo xerife e herói local, Tom Destry Jr., que, sob o manto de uma aparente ingenuidade, irá repor a ordem na cidade e combater a corrupção.
George Marshall foi um dos fundadores da linguagem cinematográfica como hoje a conhecemos. Realizou cerca de uma centena de filmes, desde a década de 20 (ainda nos tempos do cinema mudo) até ao término da década de 60. Merece ser redescoberto e A Cidade Turbulenta é um bom ponto de partida.
terça-feira, 20 de setembro de 2022
"Cassandra Crossing" - de George P. Cosmatos
Cassandra Crossing, película de 1976 realizada por George P. Cosmatos (sim, o mesmo que assinou, em 1985, o execrável Rambo II: A Vingança do Herói), marcou o apogeu dessa categoria ao filmar a história de um terrorista contaminado com um vírus letal, que se esconde num comboio na estação de Genebra. O comboio acaba por ser lacrado e forçado a mudar de rota, com o propósito de colocar os passageiros em quarentena num antigo campo de concentração nazi.
Com um elenco repleto de vedetas (como era característico dos filmes-catástrofe), que inclui a participação do icónico professor de teatro Lee Strasberg, fundador do Actors Studio, realização segura e fotografado num esplendoroso tecnicolor, Cassandra Crossing envelheceu bem e continua a proporcionar cerca de duas horas de entretenimento inteligente e estranhamente atual.
segunda-feira, 19 de setembro de 2022
"O Embaixador" - de J. Lee Thompson
J. Lee Thompson era já um realizador veterano quando assinou esta exortação pela paz no Médio Oriente, em particular em prol do diálogo entre israelitas e palestinianos.
O Embaixador, obra de 1984, é, talvez, o objeto fílmico mais explícito no seu propósito apologético do entendimento entre judeus e muçulmanos moderados como forma de unirem esforços contra os extremismos dos dois lados do conflito israelo-palestiniano. É certo que também se trata de um filme de ação, género no qual J. Lee Thompson sempre foi um mestre, mesmo quando tinha um orçamento muito aquém da ambição da obra (veja-se a cena de abertura, de cortar a respiração).
O Embaixador é um filme com um grande elenco: Robert Mitchum (no papel de um embaixador pacifista), Ellen Burstyn (numa exuberante meia-idade, mais bonita do que nunca) e Rock Hudson (naquele que foi o seu último filme, ainda imponente e em boa forma).
Há quanto tempo não se fazem longas-metragens assim, com objetivos comerciais, diretos ao osso, noventa minutos feéricos, mensagem política e filosófica que respeita a inteligência do espectador?
sábado, 17 de setembro de 2022
Estado da Nação (36) - O Portugal de Costa, Família e Amigos no top ten... da pobreza
Convém não esquecer, no entanto, que este é o país que, no início deste ano, quis dar ao PS maioria absoluta para (des)governar.
sábado, 8 de janeiro de 2022
Os 10 melhores filmes de 2021
Antes de mais, importa expor uma breve declaração de intenções: os dez filmes que escolhi como os melhores de 2021 incluem uma obra que, já tendo mais de três décadas, só agora foi exibida comercialmente em Portugal. Refiro-me ao opus 1 de Wong Kar Wai, "Ao Sabor da Ambição".
São dez filmes que demonstram que o importante na Arte (em toda a Arte, não apenas na Sétima) é a procura da Beleza e da Verdade - os dois critérios estéticos e éticos que ainda servem de bússola ao grande cinema. Como todas as listas, a minha também é subjetiva, mas quem não viu um ou mais dos filmes que nomearei a seguir, aconselho vivamente que o faça. Há Beleza e Verdade por aqui. E há, sobretudo, grande Cinema.
1. "Titane" - de Julia Ducournau
2. "A Metamorfose dos Pássaros" - de Catarina Vasconcelos
3. "Diários de Otsoga" - de Maureen Fazendeiro e Miguel Gomes
4. "Identidade" - de Rebecca Hall
5. "Licorice Pizza" - de Paul Thomas Anderson
6. "The Card Counter" - de Paul Schrader
7. "Ao Sabor da Ambição" - de Wong Kar Wai
8. "O Discípulo" - de Chaitanya Tamhane
9. "O Pai" - de Florian Zeller
10. "Rifkin's Festival" - de Woody Allen
Breves notas sobre o cinema de Wong Kar Wai (6) - "Disponível Para Amar" (2000)
E, no ano da graça de 2000, Wong Kar Wai alcançou o zénite da sua (sétima) arte com a obra-prima Disponível Para Amar . É (mais) uma históri...