William
Tell é um ex-militar com grande talento para o jogo de cartas, a que se dedica
obsessivamente, de modo a manter o passado convenientemente recalcado. Em boa
verdade, este jogador profissional, metódico e ritualista (cobre com lençóis
brancos todos os móveis dos quartos de hotel onde fica hospedado) esteve muitos
anos preso devido à cumplicidade nos crimes cometidos na prisão de Abu Ghraib
durante a Segunda Guerra do Golfo. No entanto, as memórias desses anos
ressurgem quando assiste a uma palestra de um antigo oficial responsável por
treinar militares em técnicas de tortura.
Com
The Card Counter regressámos ao cinema de autor daquele que é,
porventura, a par de Woody Allen, um dos mais coerentes e intransigentes
cineastas norte-americanos. Uma vez mais, Schrader cria uma obra pessoal,
marcada por personagens trágicas em busca de redenção. Ora, para um
intelectual tão marcado pela teologia cristã como Schrader só o sacrifício
possibilita a redenção. Por isso, desde o argumento de Taxi Driver que
este autor parece estar (quase) sempre a contar a mesma história – mas fá-lo
sempre com ousadia e inconformismo.
William
Tell (meticulosamente interpretado por Oscar Isaac) não é um sucedâneo de
Travis Bickle (o icónico personagem imortalizado por Robert De Niro em Taxi
Driver), embora com ele estabeleça pontos de contacto, senão vejamos: (i)
são os dois ex-veteranos de duas guerras que, em tempos diferentes, mancharam a
reputação libertária do exército norte-americano; (ii) sentem-se acossados pela
participação numa guerra cujo propósito não compreenderam; (iii) vivem como
presbíteros mundanos em busca da virtude. Todavia, William Tell, na sua
aparente lucidez, está mais próximo de Ernest Toller, personagem central de No
Coração da Escuridão, filme anterior de Schrader. Mas é tão-só isso: a
(aparente) lucidez e – diria até – a formação intelectual de William Tell e
Ernest Toller (Travis Bickle era demasiado autocentrado e indiferente à cultura
académica). Porque, de resto, a loucura e a violência sacrificial mantêm-se à
flor da pele.
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