sexta-feira, 14 de outubro de 2022

Paul Schrader (3) – “The Card Counter – O Jogador”

William Tell é um ex-militar com grande talento para o jogo de cartas, a que se dedica obsessivamente, de modo a manter o passado convenientemente recalcado. Em boa verdade, este jogador profissional, metódico e ritualista (cobre com lençóis brancos todos os móveis dos quartos de hotel onde fica hospedado) esteve muitos anos preso devido à cumplicidade nos crimes cometidos na prisão de Abu Ghraib durante a Segunda Guerra do Golfo. No entanto, as memórias desses anos ressurgem quando assiste a uma palestra de um antigo oficial responsável por treinar militares em técnicas de tortura.

Com The Card Counter regressámos ao cinema de autor daquele que é, porventura, a par de Woody Allen, um dos mais coerentes e intransigentes cineastas norte-americanos. Uma vez mais, Schrader cria uma obra pessoal, marcada por personagens trágicas em busca de redenção. Ora, para um intelectual tão marcado pela teologia cristã como Schrader só o sacrifício possibilita a redenção. Por isso, desde o argumento de Taxi Driver que este autor parece estar (quase) sempre a contar a mesma história – mas fá-lo sempre com ousadia e inconformismo.

William Tell (meticulosamente interpretado por Oscar Isaac) não é um sucedâneo de Travis Bickle (o icónico personagem imortalizado por Robert De Niro em Taxi Driver), embora com ele estabeleça pontos de contacto, senão vejamos: (i) são os dois ex-veteranos de duas guerras que, em tempos diferentes, mancharam a reputação libertária do exército norte-americano; (ii) sentem-se acossados pela participação numa guerra cujo propósito não compreenderam; (iii) vivem como presbíteros mundanos em busca da virtude. Todavia, William Tell, na sua aparente lucidez, está mais próximo de Ernest Toller, personagem central de No Coração da Escuridão, filme anterior de Schrader. Mas é tão-só isso: a (aparente) lucidez e – diria até – a formação intelectual de William Tell e Ernest Toller (Travis Bickle era demasiado autocentrado e indiferente à cultura académica). Porque, de resto, a loucura e a violência sacrificial mantêm-se à flor da pele.

Sem comentários:

Enviar um comentário

Breves notas sobre o cinema de Wong Kar Wai (6) - "Disponível Para Amar" (2000)

E, no ano da graça de 2000, Wong Kar Wai alcançou o zénite da sua (sétima) arte com a obra-prima Disponível Para Amar . É (mais) uma históri...