Descobri o cineasta Spike Lee com o filme Do The Right Thing, corria o ano de 1989 e estava a terminar o liceu (por onde anda esta palavra, verdadeira referência identitária de uma adolescência quase adulta?). Alguns críticos referiam-se a Spike Lee como o Woody Allen negro, mérito das suas primeiras obras (She's Gotta Have It, de 1986, e School Daze, de 1988), onde, sendo já possível encontrar as marcas distintivas do seu cinema (e que iria apurar em obras posteriores), conhecíamos personagens urbanas intelectuais de classe média, as suas relações afetivas e dilemas existenciais embrulhados numa estética próxima dos primeiros clássicos do realizador de Annie Hall (1979) e Manhattan (1979). Rever hoje She's Gotta Have It ou Do The Right Thing é redescobrir comédias frescas, ousadas e, acima de tudo, livres. Sim, as melhores Spike Lee joints são aquelas em que se sente que o realizador está - à semelhança de Allen, Coppola, Kubrick ou Tarantino - a fazer realmente o filme que queria com total liberdade criativa.
Estamos em 2020 e o cinema já não é sinónimo de sala escura e grande ecrã. Spike Lee disse numa entrevista recente que fica estupefacto quando os seus alunos de cinema lhe contam que viram épicos de David Lean no telemóvel, e é essa a sensação do cinéfilo ao ver que o novo filme do autor de Jungle Fever (1991) foi concebido para a Netflix e não para o grande ecrã. Mas Da 5 bloods é cinema autêntico: uma comédia trágica americana filmada com o rigor e a sabedoria de um artista já veterano e o desprendimento experimental do jovem que assinou Do The Right Thing há mais de 30 anos.
Quatro velhos amigos, irmãos de armas na Guerra do Vietname, regressam a este país, 50 anos depois, para resgatarem o corpo de um soldado e recuperarem as barras de ouro que esconderam na selva vitenamita. Spike Lee intercala a narrativa principal com imagens de arquivo e com flashbacks dos cinco camaradas no inferno da guerra mantendo os atores sem qualquer rejuvenescimento (ao contrário, por exemplo, do artificialismo digital de O Irlandês (2019), de Martin Scorsese).
Que não restem dúvidas: este é o Spike Lee pregador, historiador especialista em african-american history, intelectual num perpétuo estado de angústia, mas também o artista otimista que vê claramente que Deus é Amor, que Ele está na beleza das canções de Marvin Gaye, na inter-racialidade e que só o Amor nos pode salvar enquanto indivíduos e enquanto espécie. Ah!, e há um Delroy Lindo no papel da sua vida. Só por ele, e pela garra da sua interpretação, já valia a pena ver este digno sucessor de BlacKkKlansman (2018) e - por que não dizê-lo - Apocalypse Now (1979), de Francis Ford Coppola.

Sem comentários:
Enviar um comentário