terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Os Professores - por valter hugo mãe


Achei por muito tempo que ia ser professor. Tinha pensado em
livros a vida inteira, era-me imperiosa a dedicação a aprender e não
guardava dúvidas acerca da importância de ensinar. Lembrava-me de alguns
professores como se fossem família ou amores proibidos. Tivem uma professora
tão bonita e simpática que me serviu de padrão de felicidade absoluta ao
menos entre os meus treze e os quinze anos de idade. A escola, como mundo
completo, podia ser esse lugar perfeito
... Ver mais de liberdade intelectual, de liberdade superior, onde cada
indivíduo se vota a encontrar no seu mais genuíno, honesto, caminho. Os
professores são quem ainda pode, por delicado e precioso ofício, tornar-se
o caminho das pedras na porcaria de mundo em que o mundo se tem vindo a
tornar. Nunca tive exatamente de ensinar ninguém. Orientei uns cursos
breves, a muito custo, e tento explicar umas clarividências ao cão que
tenho há umas semanas. Sinto-me sempre mais afetivo do que efetivo na
passagem do testemunho. Quero muito que o Freud, o meu cão, entenda que
estabeleço regras para que tenhamos uma vida melhor, mas não suporto a
tristeza dele quando lhe ralho ou o fecho meia hora na marquise. Sei
perfeitamente que não tenho pedagogia, não estudei didática, não sou senão
um tipo intuitivo e atabalhoado. Mas sei, e disso não tenho dúvida, que há
quem saiba transmitir conhecimentos e que transmitir conhecimentos é como
criar de novo aquele que os recebe. Os alunos nascem diante dos
professores, uma e outra vez. Surgem de dentro de si mesmos a partir do
entusiasmo e das palavras dos professores que os transformam em melhores
versões. Quantas vezes me senti outro depois de uma aula brilhante.
Punha-me a caminho de casa como se tivesse crescido um palmo inteiro
durante cinquenta minutos. Como se fosse muito mais gente. Cheio de um
orgulho comovido por haver tantos assuntos incríveis para se discutir e por
merecer que alguém os discutisse comigo. Houve um dia, numa aula de
história do sétimo ano, em que falámos das estátuas da Roma antiga.
Respondi à professora, uma gorduchinha toda contente e que me deixava
contente também, que eram os olhos que induziam a sensação de vida às
figuras de pedra. A senhora regozijou. Disse que eu estava muito certo.
Iluminei-me todo, não por ter sido o mais rápido a descortinar aquela
solução, mas porque tínhamos visto imagens das estátuas mais deslumbrantes
do mundo e eu estava esmagado de beleza. Quando me elogiou a resposta, a
minha professora contente apenas me premiou a maravilha que era, na
verdade, a capacidade de induzir maravilha que ela própria tinha.
Estávamos, naquela sala de aula, ao menos nós os dois, felizes.
Profundamente felizes. Talvez estas coisas só tenham uma importância
nostálgica do tempo da meninice, mas é verdade que quando estive em
Florença me doíam os olhos diante das estátuas que vira em reproduções no
sétimo ano da escola. E o meu coração galopava como se estivesse a cumprir
uma sedução antiga, um amor que começara
muito antigamente, se não inteiramente criado por uma professora, sem
dúvida que potenciado e acarinhado por uma professora. Todo o amor que nos
oferecem ou potenciam é a mais preciosa dádiva possível. Dá -me isto agora
porque me ando a convencer de que temos um governo que odeia o seu próprio
povo. E porque me parece que perseguir e tomar os
professores como má gente é destruir a nossa própria casa. Os professores
são extensões óbvias dos pais, dos encarregados pela educação de algum
miúdo, e massacrá-los é como pedir que não sejam capazes de cuidar da
maravilha que é a meninice dos nossos miúdos. É como pedir que abdiquem de
melhorar os nossos miúdos, que é pior do
que nos arrancarem telhas da casa, é pior do que perder a casa, é pior do
que comer apenas sopa todos os dias. Estragar os nossos miúdos é o fim do
mundo. Estragar os professores, e as escolas, que são fundamentais para
melhorarem os nossos miúdos, é o fim do mundo. Nas escolas reside a
esperança toda de que, um dia, o mundo seja um
condomínio de gente bem formada, apaziguada com a sua condição mortal mas
esforçada para se transcender no alcance da felicidade. E a felicidade,
disso já sabemos todos, não é individual. É obrigatoriamente uma conquista
para um coletivo. Porque sozinhos por natureza andam os destituídos de
afeto. As escolas não podem ser transformadas em lugares de guerra. Os
professores não podem ser reduzidos a burocratas e não são elásticos. Não é
indiferente ensinar
vinte ou trinta pessoas ao mesmo tempo. Os alunos não podem abdicar da
maravilha nem do entusiasmo do conhecimento. E um país que forma os seus
cidadãos e depois os exporta sem piedade e por qualquer preço é
um país que enlouqueceu. Um país que não se ocupa com a delicada tarefa de
educar, não serve para nada. Está a suicidar-se. Odeia e odeia-se.

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