domingo, 22 de setembro de 2019

"Dor e Glória" - de Pedro Almodóvar


A memória foi sempre a matéria-prima dos filmes do período de maturidade de Almodóvar. Enquanto cinéfilo adolescente, nos idos de 80 do século anterior, nunca me deixei conquistar pelo então jovem cineasta espanhol. Negros hábitos (1983), Que fiz eu para merecer isto? (1984), Matador (1986), A lei do desejo (1987), Mulheres à beira de um ataque de nervos (1988) ou Ata-me (1989) eram, para mim, filmes sobrevalorizados de um realizador histriónico.

Tudo mudou quando vi, no saudoso Cinema Nun'Álvares, no Porto, o thriller negríssimo Em carne viva (1997). Percebi, então, que Almodóvar se tornara um autor maduro que aprendera a apurar a escrita e o sentido estético. De resto, neste momento, julgo que Almodóvar é, com De Palma, o maior herdeiro de Hitchcock.

Dor e Glória, o seu mais recente filme, não está à altura do filme que destaquei (assim como de Tudo sobre a minha mãe (1999) ou Julieta (2016)), embora seja talvez a obra mais pessoal de Almodóvar. Conta-nos acerca da crise existencial de um realizador de meia idade que, a pretexto do restauro, pela Cinemateca de Madrid, do seu filme mais célebre, passa em revisão as vivências mais marcantes do seu passado: a infância pobre na aldeia natal, a ida forçada para o seminário, a descoberta da identidade sexual, o sonho de viver na capital, o amor da sua vida, a morte da mãe e o regresso às raízes.

Estamos perante uma espécie de "Almodóvar 8 1/2". Mas não nos deixemos enganar por esta referência, pois a analogia com o clássico de Fellini fica-se por aí, pela superfície da sinopse e pela desmontagem do artifício cinematográfico no plano final (belíssimo, diga-se de passagem). Neste sentido, Dor e Glória é, objetivamente, obra almodóvariana: nas personagens, nas cores garridas a evocar o technicolor clássico e a Pop Art, no rigor formal, na banda sonora, no humor ácido e até no experimentalismo contido (veja-se a sequência de animação, que resolve em três tempos grande parte da história das dores e glórias do protagonista).

Antonio Banderas parece ter esperado toda a carreira por este filme, confundindo-se inteiramente com a personagem que interpreta. Será, com certeza, um dos melhores filmes de 2019. Mas há algo de excessivamente transparente nesta assumida autoficção (Salvador Mallo bem podia chamar-se Pedro Almodóvar, tantos os episódios e referências da sua vida que se confundem com a biografia do próprio realizador; a exposição das fotografias dos pais de Almodóvar no quarto da mãe de Salvador torna tudo demasiado evidente) que coloca Dor e Glória alguns passos aquém do estatuto de obra-prima.

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